terça-feira, 28 de setembro de 2010

A dor não vira as costas.

Dentre a infinidade de programações absurdas para uma sexta-feira, apelei. Fui na casa da ex buscar um televisor, regalado após a troca por um mais novo, mais leve e mais fino. Consultei meus músculos e eles, apesar do passado recente de inércia quase absoluta, confirmaram a disposição de enfrentar o desafio.



Como se não bastasse o peso do aparelho (certamente mais de um quilo por cada uma das 29 polegadas), o trajeto era terrível: do alto do terceiro andar do prédio dela para o carro, e do carro para o alto de meu primeiro andar alto. Outros fatores agregaram-se à empreitada: a estreiteza das passagens, a absoluta falta de elevadores e, nos últimos instantes de suplício, o fio ‘sem mãe’ que ficou dependurado e insistia em pousar justo sob o meu próximo passo.

Contrariando todas as normas de boa conduta ortopédica, depois de todo o esforço, me curvei abraçado ao monstro, e o pousei no chão com as pernas esticadas. Já não conseguia pensar em outra alternativa, e o fiz até com alguma desenvoltura. Assim, terminado o trabalho, ainda estava bem, embora suado e ofegante.

Despedi da ex e, antes de montar minha nova sala de exibições, deitei por alguns instantes sobre o colchão inflável que faz as vezes de cama de minha filha e, como sempre, estava um pouco vazio. Minha namorada, talvez impressionada por meu ato heróico, resolveu se jogar sobre mim. Fiquei bastante torto, mas estava exausto e aceitei a condição. Então, sem demorar muito, movido pelo desconforto, clamei por liberdade. Em seguida, mega-poderoso, levantei com um salto... Pronto!

Descaderei feio. Numa só puxada, uma dor lancinante avançou pelo lado direito da minha região lombar, e ali se instalou confortavelmente. Parecia não querer me deixar. Um fato raro para minha atual situação burocrata, especialmente pelo fato de que, até no futebol, estou sentado no Banco. Em suma, como estou praticamente aposentado dos esportes, fazia muito tempo que eu não tinha meus movimentos limitados sequer por uma unha detonada, um tostão bem dado, ou um tornozelo meio torcido. Ademais, realmente doente praticamente nunca fico.

No fundo, contudo, foi muito esclarecedora para mim a sensação de limitação que experimentei aqueles dias. Na rua, o vagaroso era eu. O alvo da chacota dos amigos pela lentidão incrível para sentar ou levantar de uma simples cadeira era eu. Era eu quem fazia as caras mais grotescas para avançar uns poucos passos.

Agüentei com maturidade a zombaria dos amigos, que me acusavam de ter abusado de usos outros (aos que estou acostumado) para a minha retaguarda. Entrava na galhofa alegando que fora a perda daquela virgindade que me rendera tamanho desconforto. Levantava ou sentava mais de uma vez a pedido dos amigos mais masoquistas, que se divertiam com minha lentidão e com as caretas.

Já no foro íntimo, o panorama tampouco foi consolador. Surpreendentemente, consegui comparecer no ato do amor, embora com algumas limitações que, no calor da hora, até eram excedidas. Mas não posso dizer o mesmo para o simples ato de me virar na cama, a aventura de calçar um sapato, o esforço absurdo para vestir a calça, a incapacidade completa de pegar qualquer peso.

Inicialmente, ombros e bíceps também ficaram bastante castigados. Sentia a tradução simultânea de meu recente sedentarismo no ácido lácteo que se acumulou nestes músculos. Me sentia um fraco, em todas as acepções possíveis do termo. Mas, como se a sabedoria tivesse acompanhado este breve insight sobre o provavelmente doloroso processo de envelhecimento, consegui ficar mais calmo e paciente e entender – com a série de choques nas cadeiras – que precisava ir mais devagar, ou me preparar melhor para os meus desafios.

Não fiz nada disso, até o momento. E a arrogância da ‘juventude’ voltou, tinhosa!

O poder da mente

Sou um pouco supersticioso. Não entendo bem por que, mas evito passar embaixo de escadas, bato 3 vezes na madeira quando necessário (e possível, pois o mundo é cada vez mais feito de plástico), entro e saio com o pé direito de diversos lugares, faço pequenas apostas comigo, e tento desviar do caminho de gatos pretos.
Não é sempre, mas com os gatos, por exemplo, tento refazer meu trajeto para não cruzar com a linha imaginária sobre a qual acabaram de passar, ou fico tentando mantê-los num canto, para que eu passe ao lado, ao largo de seus caminhos. Nesse dia não foi possível. O bicho saiu de surpresa de baixo de um carro, atravessou rapidamente a calçada, bem a minha frente, e entrou numa oficina.

Fiquei em situação complicada. Não conseguiria simplesmente fugir do seu rastro porque os carros estacionados estavam praticamente grudados uns nos outros, e precisaria voltar um bom pedaço para poder ganhar a rua e vir caminhando por ela. Por outro lado, me pareceu especialmente ridícula a possibilidade de entrar na oficina para contornar o gato. Ademais, tinha alguma pressa, como de costume.

Sem alternativas, rompi a fronteira imaginária com galhardia, mas, como sequer lembrava com qual pé entrara no universo que há após o traço invisível desenhado pela passagem de um gato preto (pretíssimo... nem uma manchinha!), decidi colocar em movimento o mecanismo de autonegação que – ao menos para a superfície de minha racionalidade – trouxe algum alento. Com a repetição exaustiva do pensamento “que bobagem, isso não é nada, não significa nada, não tem nada a ver...”, comecei a tentar me enganar.

Mas a impressão da situação continuava gravada em mim, e a precisão do gato ao me confrontar em momento tão indefeso era particularmente intrigante. Dali pra diante, não tive mais sossego. Alguns passos à frente, um par de senhoras caminhava de braços dados numa velocidade desconcertantemente lenta. A calçada, não tão estreita, permitia uma ultrapassagem certeira pela canhota. Mas – espanto! – tive que refrear o instinto de utilizar o nitro, e disparar no turbo, ao notar a presença de uma escada marota, apoiada sobre a marquise subseqüente. Preferindo não acumular os azares, esperei as senhoras passarem pela escada para fazê-las comer minha poeira.

O caminho para o trabalho é curto e eu já estava no final quando tudo isso aconteceu. Sinceramente, depois de tanto tempo vindo de Niterói para o centro do Rio acompanhando a crescente precarização do serviço oferecido pelas Barcas S.A., não pensava em conseguir tamanha “aventura” nos meus 15 minutos diários de caminhada. Mas as pessoas paravam subitamente a minha frente, me fechavam sem o menor aviso, carros avançavam para cima de mim, vinha uma bicicleta na contra-mão quando eu estava olhando para o outro lado. Eu já estava achando tudo engraçado, mas continuava repetindo que “não era nada...” por precaução.

Até que vi os sujeitos da prefeitura. Enquanto um escorava uma rede de proteção, o outro passava o cortador de grama num desnível do caminho. Eu vinha caminhando pelo lado oposto da rede, que protegia aos passantes do outro lado do canteiro. Tive certeza, na hora que os vi, ainda de longe: vai voar alguma coisa em mim, era só o que faltava!

E não é que, quando eu passei pelos caras, uma pedrinha acertou o meu joelho!? Ri no mesmo instante, de alívio. Mas depois, me deixei devanear um pouco sobre o ocorrido. A pedra poderia tomar qualquer direção depois de chicoteada pelo fio de nylon que esses cortadores de grama usam; qualquer minúscula diferença no meu trajeto seria suficiente para me desviar da mesma pedra – se não tivesse esperado para passar pelo par de senhoras, por exemplo; os caras poderia tentar 3 bilhões de vezes, com as mesmas condições, e jamais lograriam me acertar novamente a pedra etc. Em suma, o movimento da pedra até o meu joelho foi muito preciso e, pra mim, das duas uma: ou eu atraí a pedra até mim, ou previ que a pedra me acertaria.
E importa pouco qual das duas está certa. Afinal, nenhuma das duas pode ser explicada sem um leve constrangimento metafísico.

No caso, encontrei a explicação que mais me apeteceu: fiquei tão impressionado por uma convicção que transcende minha racionalidade que acabei fazendo uma ‘mágica’, um ‘milagre’ com a força do meu pensamento. Infelizmente, para o mal. Não que a pedra me tenha machucado, nem que se tenha concretizado minha previsão seguinte: de que meu joelho estaria prestes a estourar e a pedra seria, disto, um aviso. De fato, quando me dei conta que afundava em especulações sobre rompimento de ligamentos cruzados, dei um basta, e parei com a baboseira. Parei de me condicionar a lesionar o meu joelho que, obediente, já doía um pouco.

Mas fiquei marcado pela possibilidade de projetar coisas. O grande passo, contudo, está em acreditar nos meus sonhos como, involuntariamente, creio nas minhas superstições. Tê-los como amálgama disforme e indescritível e deixar que me guiem através da vida. Pressinto que saberei fazê-lo, um dia.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Fragmentos

Tenho preguiça de emoções fortes. Toda aquela coisa do descontrole, da agonia, dos sobressaltos, tudo isso me cansa um pouco. Até tento, sem muito sucesso, entender o que sucede comigo. Acho que me especializei em fingir um desapego que não consigo ter. Mas finjo bem. Bem demais, talvez. E acredito. Acredito no que, no fundo, não acredito. Sinto-me confuso quase sempre. Minto muito pouco, mas omito praticamente tudo. Me imagino oco, quase sem sentimentos. Mas transpiro o que escondo. Me corto, e vaza como sangue o segredo. Me exponho ao sol, e algo dentro de mim brilha. Algo que não sei o que é. E não que não queira. Quero sim, quero muito. Mas evito - quanto possa - os conselhos. Uma pretensão de descobrir o que sou sozinho. De ter o mérito todo de pacificar o convívio com as manias que me constituem. E ser alguém inteiro, embora soma de cem mil pedaços.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Comentários condensados.

Pipoca uma janela do chat do gmail. Meu jovem velho irmão, Marcelo.

15:07Ibitipoca - Maneiro.. mas não deu vontade de conhecer
  Dismação - Charmosinho, Inocente 
15:08 Vizinhança - Retrato Falado.. e reflexões Oniricas Junguianas... Gostei, porque conheço...
  talvez... 
15:09 
Planteta dos Macacos - não consigo ler.. sempre aparece algo mais interessante no caminho.
 
É... Comentários sempre ajudam...
E se eu fosse um pouco mais machadiano, como o autor do último livro que li inteiro, arriscaria:
- Quem sabe um dia não chega a sua vez de comentar, amigo que me lê!

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Vizinhança

Como praticamente qualquer pessoa de Santa Teresa, moro em mais de um lugar ao mesmo tempo. Minha casa fica na própria Santa, quase Bairro de Fátima, e a Lapa é logo ali. De lá, desci para descobrir o mundo, meio dormindo, meio sonhando, depois de promover meu desjejum tardio no mesmo lugar de todos os dias.

O fato é que tento me aferrar ao meu novo lar e suas cercanias como posso. Apenas comecei a prospectar o bar mais imundo e horroroso da região para tentar substituir o buteco que frequentava com meu amigo Bruno Monstro (foi um baque enorme ver o NOSSO bar, na ladeira dos Arcos, ser transformado num lugar bonitinho... Até no já saudoso 'Barriga' deram sumiço! Tiraram o freezer que impedia um ventilador de teto de girar; arrancaram até o próprio ventilador! Uma tragédia!).

Assim, na seara do pé-sujo radical, sem dúvidas, ainda não acertei a mão. As opções prospectadas na última 'operação bar em bar' se mostraram aquém das expectativas. Na área dos 'pé-quase-limpo', contudo, já simpatizo muito com o Bar do Peixe, onde comi como um Deus, acompanhado de minha deusa; por fim, insistindo em subir, adquiro sempre que posso, nos pratos gigantescos do Arnaudo, satisfação para uma tarde inteira de prostração digestiva. Mas aí já estamos passando a categoria dos etabelecimentos quase-engomadinhos, ao menos para o meu padrão.


No entanto, minha maior simpatia recaiu sobre um singelo muquifo alimentício onde, para meu grande espanto, as atendentes não me dão muita bola. Não sei se por conta da novidade do desprezo (eu era o rei da tendinha de pão de queijo da barca, que frequentava diariamente!), ou se pelo açaí mais barato (e, portanto, mais delicioso) do Rio de Janeiro, acabei me tornando, talvez irreversivelmente, cliente contumaz da lanchonete. Passo lá uma, ou até duas vezes no mesmo dia! Quase sempre vou de açaí com banana e um joelho/italiano que, dependendo da pressa, engulo pelo caminho mesmo.


Ali começei minha primeira peregrinação espontânea semi-voluntária por meus novos bairros. Animado pelo tédio dominical, aproveitei o inverno carioca (enquanto o frio à sombra, cortante para bermudas e chinelos, se alternava com o calor descamisante do sol aberto) para caminhar pelas ruas que percorro diariamente, além de experimentar algumas variantes. Tentei palmilhar um pouco do centro da antiga capital de meu país, eu e meus chinelos. Diminuí consideravelmente a velocidade de cruzeiro habitual e pude voltar minha atenção pontos outros que não o chão do caminho.



Sem a turba enfurecida dos dias de semana, o centro do Rio expressa, de forma ainda mais caricata, os ciclos de riqueza e decadência que parecem permear toda a história do Brasil. Enquanto um prédio semi-abandonado da extinta 'polícia central' salta, feito fortaleza, dentre as ruas estreitas e sombreadas, diversos outros foram reduzidos apenas a fachadas, muitas vezes cobertas por chapisco. No pátio do prédio policial, dois 'caveirões', embora estáticos, se impõe ameaçadores. Fiquei imaginando o sujeito lá dentro, levando e mandando bala para todo lado. E imaginei também a galera que, com horror, o observa aproximar-se perigosamente de sua casa, quando em ação. Parado, já é uma visão sinistra!

Sem a pressa de todos os dias, consegui ver, no caminho diário, diversas outras coisas incríveis! Como um prédio sem acabamento externo, feito várias casas semelhantes de uma mesma favela empilhadas uma sobre as outras, que jaz ali começo da rua do Resende, onde geralmente passo entretido com o restinho do meu açaí. Percebi sua presença - até então ignorada - por conta de uma família que esperava no portão da frente, não menos mambembe que restante do edifício, olhando pra cima e tentando conseguir contato com quem quer que procurassem lá dentro. De fato, se não há sequer reboco, não haveria de ter interfone ou elevadores. Me surpreendi e, enquanto me afastava, observava que o prédio podia ser visto por vários ângulos. Especulei sobre onde ando com a cabeça para identificá-lo pela primeira vez em mais de dois meses por aqui.


Observei também um senhorzinho, que passa os dias sentado diante de uma loja de ferragens, um torneiro, sei lá. Sempre pensei que ele trabalhasse por ali, de alguma forma. Contudo, no domingo, com todas as lojas do entorno fechadas, ele continuava lá, dando acenos para qualquer criança que passasse e emitindo seus grunidos costumeiros. Ele usa seu vale transporte como se fosse um crachá, e suspeito de que não bata muito bem da ideia.

Por fim, foi a cena mais bizarra! Um mendigo estava jogado sobre suas tralhas, em frente a uma espécie de estacionamento. A barba vasta e dura brotava do queixo levantado, tornando a figura grotesca ainda mais absurda. E não parava por aí. Do outro lado da rua, um grupinho de mulheres e crianças caprichavam, aos gritos e risos, num escândalo afetado. Ao me aproximar, me dei conta do porquê: o velho, por baixo da calça imunda, se masturbava enquanto falava coisas incompreensíveis em direção aos céus.


No sentido oposto, um senhor corado, vestido de forma casual, de olhos claros e um sorriso muito simpático, vinha disparando para mim alguma espirituosidade sobre o inusitado da situação. Apertou minha mão no instante exato em que cruzávamos o mendigo punheteiro e parecia especialmente divertido com o caso. Não entendi bem o que ele disse e, como estava fumando, ofereci as costas da mão para o imprevisto aperto. Mas acho que, mesmo sem me pronunciar com algo mais do que um sorriso, não deixamos de entender o que estávamos pensando. E telepatia casual sempre me surpreende!


Fiquei pensando, esquisito que sou, que tenho potencial para me tornar qualquer um dos dois. Falhando tudo, adoraria ficar deitado sobre minhas tralhas, em frente a um estacionamento, num domingo de sol de inverno, batendo uma e blasfemando os céus com impropérios, além do ato. Tudo indo um pouco melhor, tenho certeza que, com o avanço da idade e o retrocesso dos pudores, faria questão de cumprimentar um jovem que compartilhasse comigo essas finas ironias do universo. Naquele encontro insólito, me senti em casa, como se as duas personalidades fossem complementares a minha, como se expressássemos com nossos portes, espíritos e atitudes as pequenas nuanças que nos fazem diferentes. Ligeiramente diferentes, diga-se de passagem.

Passei, e vi um outro grupo insólito se aproximando. Com as proporções de um paralelepípedo, um sujeito corpulento empurrava um carrinho de bebê acompanhado de um senhor mais velho e um garoto de seus doze anos... Era curioso observar o cara debruçado sobre o carrinho, que parecia querer se desfazer dada a pressão desproporcional usada para movê-lo lentamente. Fiquei olhando aquilo, interessado que estava em todo o entorno. E ele ia se aproximando do mendigo, já caçoando entre os dele... Até que disparou:

- Ô velho barreiro (era igual!), aí não... Para com isso!

Ibitipoca

Foi uma dessas doideiras que a gente faz pra entender que, numa próxima vez, melhor seria pensar melhor.

Eu estava sem tirar férias há um ano e pouco e já dava os primeiros sinais de estafa. Estava ficando meio maluco. Afinal, aqui no banco temos diversas regalias, benefícios, mas, especialmente quem atravessa seu primeiro ano de serviço, não tem direito a enforcar um feriado sequer. Perdi algumas boas oportunidades com a namorada e os amigos. Em suma, não viajava desde que voltara do México direto para assinar o contrato de trabalho.

Num desses arroubos esotéricos que, vez por outra, se abatem sobre mim, decidi que iria para Ibitipoca. Os relatos que busquei na internet contribuiam para lançar uma névoa de misticismo sobre o lugar, sua natureza exótica e deveras exuberante. Pedi os primeiros dois dias de folga no meu novo emprego para esticar um fim de semana no parque nacional e vivenciar a 'revelação' que parecia estar batendo à minha porta.


Fui convencido de que encontraria um duende. No fundo, acredito que existam duendes, mas eles não têm poderes mágicos. São prestidigitadores natos que, dado seu reduzido tamanho e agilidade desconcertante, são incumbidos de furtar isqueiros para acender a infinidade de incensos consumidos no mundo da fantasia. Afinal, não há produção material por lá e corre solta a notícia de que fadas, gnomos, anjos, curupiras e até mesmo o saci pererê acabaram viciados na tecnologia da chama fácil, abandonando definitivamente suas formas arcaicas de produção de fogo. Por isso os isqueiros desaparecem com tanta frequência, às vezes de dentro dos bolsos! E os malditos duendes, dizem, gozam de enorme prestígio no universo paralelo dado o monopólio do fornecimentos do aparato!

Bem, claro que não é nada disso. Nem nas fadas acredito, imagine os duendes. Mas (quase tão exdrúxulo quanto acreditar neles) levei mesmo alguma fé de que havia alguma 'mensagem' para mim em Ibitipoca, já não me lembro bem por quê. Tinha nada, mas só soube quando voltei. E ainda estou contando da ida. Cabe a mim não antecipar os fatos.

Para começar, preciso confessar que ir de ônibus daqui para o interior de Minas é uma tarefa inglória. Não sei ao certo quanto tardei, mas especulo algo entre 9 e 12 horas. E a cada minuto que me afastava, em um dos três onibus que peguei para alcançar meu destino, imaginava quão mais tortuosa não seria a volta... Felizmente, não sou de desistir no meio do caminho (se necessário, desisto no início mesmo), especialmente das empreitadas mais sem sentido a que me dedico. Ademais, era um desafio. E acho que gosto de (alguns) desafios.

Consegui levar um monte de tralha, tudo só pra mim. Me orgulhei de caminhar quase uma dezena de quilômetros com tanto equipamento (e peso!). Num rasgo de luxo, em geral, levo até meu travesseiro de penas. As pernas ainda aguentam praticamente qualquer coisa, e eu abuso, castigando ombros e costas. Quando fiz a mala, sequer desconfiava das subidas generosas, sem sequer uma remota chance de conseguir carona, que enfrentaria.

Cheguei na entrada do parque já quase na hora de fechar. Paguei o que, por ali estar, já devia. E fui entrando... Mas não havia chegado, não ainda. O sujeito da portaria informou que a área de camping estava a mais de um quilômetro dali... Então, tive o meu primeiro choque andarilho. Mais um quilometro, naquelas condições, certamente pareceriam três! E pareceram, apesar do declive da via que, de certa forma, desperdiçava quase todo o esforço que fizera para subir... Ah, uma bicicleta numa hora dessas! Não tinha...

Terminei de montar a barraca, já escuro, com a ajuda da lanterna que comprei no único comércio dentro do parque e, para quem estava, como eu, traumatizado com a distância do centro do vilarejo, único estabelecimento comercial do universo. Me dei conta, com desespero, que havia gastado muito do dinheiro (em espécie) que levava pelo caminho. Pelos meus cálculos, além da grana para os ônibus da volta (até o caixa eletrônico mais 'próximo'), tinha o suficiente para uma refeição diária e uns dois pacotes de biscoito, para quando a fome apertasse no intervalo entre um almoço e outro. Cara, nessas horas é foda ser pão-duro! Custava ter tirado mais alguns reais e, se fosse o caso, voltar com eles pra casa? Custa! Custa muito, quase sempre.

Adriano era o nome do sujeito muito simpático que cuidava da venda. Ele foi, por diversas vezes, minha única companhia no parque. Quando cheguei, servia cerveja para o chefe da reserva. Carioca gente boa, morava lá havia alguns anos. Conversei rapidamente com a dupla e fui para meu acampamento solitário. Só na barraca, só no camping... Quando me afastei das luzes da venda, vi acender o céu mais impressionante que já vi na vida. Ainda olhava para o alto embasbacado quando senti a tremedeira! Ossos já gelados... Frio!

Corri para meu abrigo tremendo horrivelmente e descobri que, dentre minha muita tralha, não havia cobertores suficientes... Afinal, fui presenteado com uma das noites mais frias do ano até então... Algo entre três e sete graus, não lembro bem... Dormi pessimamente, só quando começou a amanhecer, no curto intervalo entre o frio congelante da noite e o calor insólito do sol alto que lá fazia.

Relatei o ocorrido a meu novo amigo que, extremamente prestimoso, me ofereceu um cobertor. Ele também, ciente de minha situação financeira, caprichava muito nos almoços, que consumia depois de uma tarde de caminhadas. Me ofereceu drogas leves, como alguns goles de um conhaque terrível. Eu aceitava os mimos, muito por necessidade, mas por perceber que ele havia se conformado com o fato de que eu traçava suas refeições com disposição invulgar, mas não estava disposto a comê-lo.

De dia, era o caminhar...

Paisagens realmente alucinantes, rio e rochas poderosas. Mas água fria, de gelar num átimo todo o calor acumulado no caminho. E que caminhos. Pontos em que, equidistante entre o nada e o nada, me sentia mais sozinho do que nunca. E brincava comigo.


Para resumir a questão... Ibitipoca é lindo, deveras. Mas trate de levar o seu amor consigo! E faça um favor para o seu amigo: vá de carro!

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Dismação

- Papai, um dia eu ganhei um ovo de páscoa de um coelho de verdade.
- É filha? Que coelho?
- Aquele branquinho, que pula assim, ó!
- Ah, e ele te falou que o ovo era pra você, ou te entregou... Como foi?
- Coelho não fala, né, papai!
- Mas então como você soube que o ovo era pra você?

Alguns instantes de dispersão fizeram justiça à implicância da pergunta e, então, ela segurou a ponta do dedo, hesitante, e levou o indicador direito esticado para o topo da cabeça...

- Isso só existe na dismação, né, papai?
- Existe onde, filha?!
- Na dismação!
- É filha, só lá mesmo. Como você sabe!?

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Planeta dos macacos

Algum tempo atrás, verão a pino, fez calor. Repercutiu no coletivo um alarde sobre o aquecimento global e os efeitos nefastos que a maneira como levamos nossas vidas parece ter sobre a preservação do planeta e, com ela, a possibilidade de reproduzirmo-nos. Para que possamos continuar a conversar nos coletivos (lotados ou nem tanto) sobre coisas como esta, vem se impondo uma questão preocupante: a humanidade seria um vírus que, com seus modos, estaria esgotando o planeta, gastando tudo para seu melhor fluir?

Lembro de que, quando eu era pequeno, tinha medo da bomba atômica. Fui dos últimos a nascer ainda na década de 70, e cresci assistindo filmes de guerras contra comunistas. Mero garoto, temia que alguém apertasse um botão e eu não pudesse acordar no dia seguinte, ou acordasse em sérias dificuldades. Certamente não saberia tanto quanto imagino saber hoje das possíveis conseqüências de uma hecatombe nuclear... Não precisava tanto. Tinha medo do botão, e de suas funcionalidades. Ignorava o posicionamento geográfico de Cuba. Desconhecia que, naqueles tempos, já havia algo sobre onzes de setembro. O medo simples de criança era o de não poder continuar sendo... Criança, por exemplo.

Hoje, creio, as crianças têm medo do aquecimento global, ondas gigantes, inundações... (Parece, pelo menos, que o botão voltou pra mão de ‘Deus’!) É um desdobramento confuso, que reveste o super-poder humano de uma nova capacidade de autodestruição. Não mais a crise dos mísseis, mera alegoria caricata, no patético embate de arsenais sempre prestes a serem acionados (enquanto pequenas guerras locais confrontavam os blocos, dando vazão a profusa produção de toda sorte de armamentos mais leves do que bombas atômicas), mas uma crise que adere, implícita, mesmo ao melhor funcionamento da vida Capital.

Reproduzir nossos debates e, orientados pelo norte da razão, ampliar o raio de ação de nossos esforços implicam em conhecer a relação entre o nosso ritmo – frenético – e o ritmo do meio. Urge reconhecer que há um descompasso, mas... Caberia tanto alarde?

Vejamos um exemplo: Há um sujeito que se considera, digamos, ecológico. Desculpem a ironia com que uso o termo, embora sequer se possa notar aqui (algo como um repuxo de sobrancelha e uma torção específica da boca, simultâneos à pronúncia, que transcrevo por ser imperceptível para a linguagem escrita). Enfim, esse sujeito é vegetariano (e pensa no direito dos animais, equiparando, de certa forma, senciência e consciência), separa seu lixo (apesar de saber do fato de que quem o coleta dá outro tratamento a sua divisão entre material orgânico e reciclável), e deixa o carro em casa durante a semana para ir trabalhar (até por ser mais barato, às vezes mais rápido e se poder cochilar pelos coletivos, ainda que sob o risco de perder um debate como o que se traça neste escrito).  Esse sujeito fez uma sessão de ioga, almoçou bem, jantou uma salada, e bebeu um suco e muita água durante o dia. Foi dormir cedo, como é de seu costume. Acordou cedo, e sentiu... Precisava se aliviar da pressão que toda aquela boa comida do dia anterior fazia nas suas intimidades. Foi ao banheiro, com sinceridade. E lá ficou. Largou-se ao ofício de esvaziar-se que, convenhamos, todos nós sentimos apesar da diversidade das regularidades.

Lá ficaram os detritos, que uma descarga pródiga encarregou-se de lavar. Levando pra onde, não se pode importar. Mas lá foi ela, e suponhamos que tenha chegado a uma estação de tratamento de esgoto, tenha sido processada e atirada, por fim, ao mar por um emissário muito comprido. ‘A minha merda está lá, ao longe’, sonhamos... E seguimos dormindo com a consciência tranqüila. Vaca viva, lixos distintos separados aos sacos (sacos unidos, contudo), carro na garagem e cocô naufragado em mar aberto e distante. Somos felizes.

No entanto, com o perdão da escatologia, detenhamo-nos na cagada. Existem, hoje, algumas técnicas de compostagem que podem dar um tratamento – diverso do proposto até aqui – ao esgoto. Nos rudimentos de meu conhecimento de cidadão urbano que come carne, joga lixo até no chão, e só não sai de carro porque não tem um, sei que se pode preparar um sanitário seco, do qual sairia adubo depois de alguns meses de fermentação e ação de bactérias. Sei também que com um pouco mais de dinheiro, o metano produzido poderia servir gás para alimentação de fogões e, quiçá (com a disponibilidade de muita merda), alguns aquecedores.

Em suma, o que quero dizer é que hoje, cada um tem o seu botão. A destruição do planeta parece depender de cada um de nós. Já há tecnologia para uma vida saudável, sem maiores atritos (do que os já estabelecidos, que são muitos) entre o ser humano e a Terra. Mas falta um novo paradigma. As pessoas precisam gastar uma parte maior do seu tempo com questões de sobrevivência, subsistência, ao invés de entregar mais do que o terço que dormimos diariamente ao trabalho. O caminho pela vida precisa ser entendido de forma mais complexa do que simples venda de tempo em troca dos trocados que nos custeiam. Para que se possa pensar, enfim, em algo mais do que ‘conforto’ nos sempre esporádicos momentos de ‘lazer’. As vidas precisam ser mais harmônicas. Afinal, a rotina é desgastante para todos, mas todos, virtualmente sem exceção, compactuamos com ela, com seus méritos, suas políticas.

Os autodenominados ‘revolucionários’ de hoje são uns chatos, quase tanto quanto eu e minha inconsistentes teorias, manias e ignorâncias. Seres urbanos, adeptos dos debates, em sua estúpida maioria. Debates urbanos, para a manutenção e desenvolvimento da urbe, embora para novos fins. Talvez, contudo, a urbe precise se subdesenvolver. Temos bons veículos, podemos ficar mais distantes... Nos centros, onde tudo é próximo, se pode andar a pé. Nas casas, chamamos amigos, que vêm com rapidez e economia. Não precisa nem de tele-transporte, o caminho é bom. Haveria festas. Um pouco como há hoje. Enfim. Nós somos sempre isso. E somos cada dia mais... Uma continuidade dentre o devir constante. O neo-absolutismo... Um grupo, o planeta todo.

Eu, por exemplo, queria muito que o mundo fosse um pouco mais como eu queria que o mundo fosse. E o problema, quiçá, seja este: tem muita gente parecida comigo, que prefere ater-se com vigor a suas convicções e preguiças, ao invés de aceitar algumas divergências e trabalhar junto por uma nova forma de existência.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

O 'Caso Bruno'...

Vim caminhando pro trabalho pensando em comentar alguma coisa sobre o 'caso Bruno'. Até por que, ainda que a contragosto, acabei demonstrando uma curiosidade mórbida sobre a situação do cara. Sei lá se por ter ido vê-lo diversas vezes no maraca, ter torcido tanto pra ele, de já ter especulado tanto sobre o tema - que foi ele, que foi o Macarrão, que não foi ninguém, e a Elisa continua viva - e observar essa queda brutal e toda a sua ironia: de aspirante a goleiro titular da copa do mundo no Brasil a detento, preso por um suposto crime que, se confirmado, foi deveras estúpido. Ou mesmo por me admirar com a capacidade afetiva do sujeito. Jamais, em minha breve história emocional, sequer conheci alguém que tivesse mulher, amantes, noiva E (!!) um boneco com  uma genérica do mundo da bola. O cara é, digamos, pau pra toda obra!

No fundo, o que mais me incomoda nisso tudo é perder o tempo que a imprensa parece desejar que eu perca pra saber que 'o novo careca da prisão afirmou que odeia o mengão'... Em compensação, algumas piadas sobre o assunto são realmente hilárias!

Soube pouco do Nardoni, alguma coisa sobre o filho da Cissa (pela insistência!). Virtualmente nunca assisto telejornal e, dos da banca, leio só as capas. Leio somente o que me interessa e - curioso, rapaz! - me interesso por cada coisa! Fico meio por fora de diversas 'comoções' nacionais, embora tenha fissurado o quanto pude com a copa, mesmo na minha televisão analógica 3D, sem o óculos!

'Ia' escrever algo, mas acabei achando um texto que fala tudo o que queria dizer, com muito mais poder de síntese e até mesmo mais estilo... Afinal, encaixar a relação entre agricultura e monogamia no meio disso tudo foi, sem dúvida alguma, genial!

Segue a dica:

http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI4594793-EI8423,00-O+caso+Bruno+e+voce+nada+a+ver+tudo+a+ver.html

Em tempo, não conheço o autor, não sou amigo dele, e não ganhei jabá pela indicação... Ademais, caso seja necessário, posso assegurar que, pelo menos eu, nunca comi a menina (alguém tinha que ficar de fora)!

quinta-feira, 29 de julho de 2010

E amor acaba?

Se acaba eu não sei, mas conheço uma infinidade de técnicas para soterrar um sentimento, que usamos, em geral por razões táticas, como defesa.

Quando alguém caro se transforma numa presença intolerável, ou simplesmente desaparece, colocamos seus vestígios numa caixa e atiramos sobre ela toda sorte de desconforto, que produzimos em profusão enquanto estamos tristes. Mágoas, inseguranças e frustrações aliadas em forma de mau ruído, que corrói por dentro a cabeça, o estômago, o coração...

Preferimos ver o lado negativo de tudo aquilo, nos arrependemos de estar inteiros nos momentos lindos, por estarmos muito abertos, por estarmos entreges a alguém que vai embora, ou se tranfosma numa presença intolerável.

O amor é uma coisa mágica, que acontece muito de vez em quando. De fato, a busca por ele, movimenta o mundo. Instintos nos empurram, um para cima dos outros. Atendemos o impulso de permanecer às turras. E muito pelas expectativas, pelo que espreitamos de amores outos e supomos querer pra nós. Tudo muito complicado pro ato mais simples para o qual fomos programados. Vontade absoluta, instantânea. Um foco obsessivo, que a gente até tenta transpor, sem muito sucesso, para outras áreas de atuação. Oferecer o êxtase dos sentidos, sempre! E ter muita gana de consumí-lo.

Tendemos a achar que o outro tem a chave dessa nossa caixa de pandora. E entregamos as chaves de acesso ao sumo de nossas delícias, deixamos que decida o que fazer com elas. Idealizamos interpretações mediúnicas de nossos desejos; que as portas se abram no exato instante em que passamos, ou nos precedam por instantes, definindo nosso caminho. E que esse processo acelere, quiçá, a passagem pelas portas do imenso labirinto que nos cerca a que estamos condenados.

Em geral, chafurdamos na burocracia afetiva, emitimos e pagamos boletos com total presteza, iludidos de estar fazendo o melhor negócio! Mas jazimos, feito baratas, sobre o marasmo da espera. Que a pessoa chegue, que não vá embora, que te preencha as brechas, te complete, te ature, te queira, te beije, te cheire, te cuide, te abrace, te escute, te sinta; que se sinta completa contigo, que não tenha dúvidas, desejos, amantes, segredos, passado... Sorvemos - ávidos - o alento que compensa o ritmo em que as coisas fluem. Queremos alguém que nos faça perfeitos!

No fundo, contudo, você se completa só. E, aí sim, vai compartilhar o quanto pode. Com a coragem que tiver, com os medos. A gente insiste em complicar as coisas. Afinidades são sutis, mas poderiam ser melhor expressada, se quiséssemos.

Encontrar alguém especial é uma coisa rara. E eu conheço muito pouca gente que não queira.

Ademais, uma marca pode ser eterna, mesmo que um relacionamento não seja.

Ojalá, sê boa, a lembrança!

Sem dúvida, alguma coisa o foi.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Pela anexação das Guianas

Nunca antes na história desse país, esse país foi tão grande.

Ninguém aqui conhece ninguém de lá.

Ademais, imperialismo é normal, sempre rola, em qualquer época, ou lugar.

Pela anexação das Guianas, já!



Rumo à Rússia!

Seremos, em um futuro próximo, o MAIOR país do mundo!!

segunda-feira, 26 de julho de 2010

De pombas, galinhas e bundas.

Quase sempre caminho numa velocidade muito acima da média. Na verdade, vendo muito caro qualquer tentativa de ultrapassagem e, mais de uma vez, assisti meus oponentes improvisados afastarem-se lentamente em uma releitura da marcha atlética, ainda mais patética pela falta de contexto. Afinal, provas de marcha atlética chegam a provocar uma ponta de vergonha alheia e, em geral, só se consegue tolerar a estranheza do rebolado pelo fato de todos estarem, ao mesmo tempo, fazendo aquilo.

Algumas vezes, os insolentes que ousam impor sobre mim suas agilidades precisam mesmo arranhar um trote, nem que seja para abreviar o constragimento do momento (largo pela diferença minúscula de velocidade) em que emparelhamos. Hoje, passava por um senhor, em disparada, quando escutei o primeiro grito:

- Ahhhhh.

Me virei assustado para ver que ele levava a mão esquerda á testa. Acredito que a enxugava com um lenço, ou simulava este movimento. Mas o sujeito insistia em se pronunciar:

- Ai, ai, ai, mas assim eu não aguento. Como é que pode, rapaz, uma lindeza destas? Isso não é uma mulher, é uma tetéia!

De fato, mesmo com pressa, afrouxei o passo para observar o motivo da exaltação do senhorzinho. Uma bunda realmente bonita rebolava logo à nossa frente. Nada de exagero: tamanho exato; formato perfeito; empinamento consistente; marca sutil da calcinha, interessantemente pequena (pra mim, que não gosto de fios dentais, nem para passar nos dentes, nem para os assistir 'cobrindo' bundas), por baixo do jeans escuro; e um movimento enlouquecedor de quem parece saber que quase mata os velhinhos e atiça mesmo os garotões como eu.

Tive o impulso de comentar com ela que, realmente, estava deslumbrante, mas não tive tempo. Já quase alcançava a moça quando ela parou bruscamente para observar sua maquiagem no espelho que havia na coluna de um bar. De relance, vi o rosto que parecia não comprometer o conjunto, até porque a maioria dos homens não olha para cara de ninguém, e mesmo a minoria que observa outros atributos (dentre os quais, me incluo), costuma dar generosos descontos a assimetrias, protuberâncias desmedidas e qualquer outra inconsistência facial. Afinal, mesmo as mais fracas de feição causam frissom em caso confirmado de presença de outras qualidades, digamos, 'pronunciadas'.

Bem, é uma estória boba, eu sei, e, no fundo, belas bundas abundam. Ademais, o batom laranja que percebi no mesmo relance em que avaliei o rosto da protagonista da cena, me passou a impressão que ela teria, além de um conteúdo imprevisível, uma voz especialmente estridente.

Mas o que faz valer o relato - como sempre, aliás - é a fraquíssima teoria que o acompanha. Neste caso, percebi que, enquanto eu gosto de andar rápido, mulheres, em geral, andam com mais tato. Parecem conhecer - especialmente as belas, em qualquer acepção possível do termo - muito amiúde, a reação que causam nos mais diferentes 'públicos'. E eu sou mais bronco, atravesso, passo como um tanque. Ignoro, quase solenemente, se me encaram a bunda, ou outros atributos, e isso talvez não seja muito estratégico.

Por fim, para os bravos guerreiros que conseguiram chegar até aqui, após navegar neste infindo mar de baboseiras, gostaria de destacar a provavelmente imperceptível sorte que tiveram: também no caminho pro trabalho, assisti uma outra cena peculiar que, assim como a bunda e o delicioso sol de inverno que aqueceu a manhã, contribuiu sobremaneira para a minha felicidade parcial (até o momento, tudo ok!).

Faz tempo que não via disso, mas na rua dos bares especializados em todo o tipo de peixe, pela qual passo diariamente, há um matadouro. Um aviário, sei lá. Sei que é um lugar onde vendem galinhas e variantes, ainda vivos ou recém abatidos! Ali, além do inusitado de 'aceitarem jornais' como doação, paira um cheiro talvez pior do que o do ralo do meu banheiro.

Sempre passo olhando curioso para os frangos, galinhas e perus, apesar do olhar perdido que me retribuem, e penso no que pensam durante o tempo que têm antes de virar coxinha, outros quitutes, ou mesmo um despacho... Na cena de hoje, inédita, dentro da loja ainda fechada (é uma grade, se pode ver todo o interior), um pombo encarava os seus amigos de Classe (Recordar é viver: Reino, Filo, Classe, Ordem, Gênero, Espécie, sub-espécie). Todos, sem exceção, aves. Talvez pensasse, perplexo, que o fato de não ser tão saboroso lhe salva a vida e o mantém livre, ainda que não muito benquisto.

Mas se os atributos das pessoas, tal videogame, fossem escolhidos antes da partida da vida pelo próprio usuário do avatar, duvido que alguém escolhesse ser mais longevo em detrimento de ser mais desejado e, em suma, mais comido!

sábado, 24 de julho de 2010

Lar doce

Estava no banheiro, com a porta entreaberta como de costume. Olhei pro lado do espelho e pensei: porra, tô na minha casa! No reflexo, acima da minha testa, via a janela para pedra que há ao lado do chuveiro, um mistério insondável de minha nova residência, e especulava sobre a consistência da parede contígua, pensando em instalar ali, num futuro impreciso, um box blindex classic! Depois dos armários, juro que arrumo um dinheiro para reformar o banheiro, colocar azulejos coloridos, caso o restante da casa permaneça branco, o que é improvável, já que o branco dá tanto trabalho. E sujeira tem me incomodado ao ponto de quase levantar e sair limpando tudo. Já acordo encarando um pequeno bolo de pêlos de todas as naturezas e consistências. O auto-questionamento anatômico é constante: de onde proveria cada exemplar? Tenho comigo que, com o tempo, poderei precisar a origem de cada fio por sua cor, suas voltas, seus comprimentos... No fundo isso pode ser interessante, e me agarro à esta possibilidade.

Mas o ralo do chuveiro não é nada interessante. Ele permanece vedado, guardando lá dentro um cheiro hediondo. Não chego a temer que exploda, mas me incomodo sinceramente de ter um escoamento tão precário para meus banhos e ar tão irrespirável para o meu banheiro sem janelas outras que aquela. No fundo, o ralo é um buraco na pedra sobre a qual meu apartamento está estabelecido. Sim, o que a aparece na insólita janela para o nada de meu banheiro, nada mais é do que a ponta de um enorme iceberg de pedra ou, buscando maior precisão lingüística e trocadilheira, um rockberg!

Um dia contrato alguém munido de marreta e ponteira – e cheio de marra – para instalar ali um sifão decente, e manter distante o olor maldito que espalhamos pelo mundo, dada nossa forma particular de produzir energia. Pra piorar, acabei lendo que ralos drenam, além da água, energia. Nele se esvai parte do que produzimos com garfos, do que processamos descansando, do que arrancamos do mundo nos damasiadamente raros arroubos de felicidade.

E, como do 'Chi' a gente nunca sabe quando vai precisar, tenho preferido acumulá-lo, para qualquer eventualidade. Para enfrentar com valentia o enfadonho ciclo da roupa, os pêlos implorando para serem varridos, e a pia, que clama por uma ducha fria... E, como se já não bastasse, tudo poderia ser mais simples, mas a roupa amassa enquanto lava, venta sempre que se varre e a pia, não se sabe como, JAMAIS consegue ficar sozinha, vazia.

Ter uma casa é uma aventura indescritível. Sei que fracasso terrivelmente ao contá-lo, atento ao fato de que, quem gosta de reclamar, adora reclamar do que gosta, reclamo dela (a casa), dos amigos, e até da lindeza da minha filha. E sou, como quase todo mundo, bastante feliz assim. Como sou.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Terça terçã

Graças a qualquer coisa, não se pode filmar o que acontece dentro de nossas cabeças. Seria algo realmente constrangedor observar que é exibido, tal filme, o que estamos pensando.

Passei a noite nisso, evitando e, quando possível, omitindo...

Na verdade, não. Tenho uma insólita capacidade de ser desconcertantemente sincero. Hoje, menos sonso, percebo a reação das pessoas, e que nem sempre sou feliz em minhas colocações. Mas sinto cada vez menos dificuldades em expressar exatamente o que penso. Na verdade, se formos analisar mais profundamente, tomando a noite passada como referência, de fato me deixei quedar em assuntos já esgotados, isolado num canto, ligeiramente acompanhado; fui menos incisivo do que ‘gostaria’ com algumas situações afetivas, como sempre, aliás; pareci arrogante em alguns momentos, embora, ciente de mim, tenha me desculpado ostensivamente, obcecado por conviver que estava; ri como um louco de chistes meus, e alheios; expressei-me aos gritos, ao ponto de ficar rouco; especulei sobre revoluções, ainda que ainda queira ficar rico; fui indiscreto, talvez em demasia, sobre minha atual situação; revelei segredos sobre o funcionamento dos homens para mulheres; indaguei sobre o monopólio do samba, ou da tradição da moda; comprei muitas três cervejas por cinco; carreguei a mochila e o livro que nela leio por osmose durante toda a estada; por fim, encarei a estrada recusando convites – fica!, diziam; e nem caí cochilado no meu coletivo, que veio fulminando o asfalto. Apenas poucos instantes de um relaxamento estranho (levanto os joelhos, apoiados sobre o banco da frente; ora pés pendentes, ora postura iogue de calcanhar na bunda, ou sob esta, em configurações momentaneamente confortáveis), típico de pessoa esquecida pelas médias, imprevista para o espaço disponível. Não lembro onde saltei para me socorrer num taxi. Fomos voando. O motorista mudo enquanto eu me desconectava de frases soltas e, em geral, inaudíveis. Acabei chegando em casa, quase sem perceber... Minha casa! Amo chegar na minha casa!

Mas preciso voltar do relato rico para a filosofia barata, baratinha. Uma pexincha!

Falava sobre o ato de falar. E como, além da sorte, alguns recatos nos podem encaixar numa comunicabilidade mais branda, que acaba gerando dividendos neste gigantesco jogo da vida (da Estrela? Ou Grow?) que compartilhamos. Na escrita, talvez seja mais difícil ser completamente espontâneo. O tempo é muito para refletir sobre o que pode ser dito. E os recursos para apagar são vastos. Refazer é fácil, ao menos desde que inventaram a borracha. Hoje, ainda mais frenético, há uma tecla para apagar o que teclamos com as outras. Pra ela, criaram verbo na nossa língua. Reformulações épicas foram rebaixadas a atos banais. Criou-se a super-escrita, arriscaria, com muito medo de errar depois da última reforma de ortografia.

E a gente fala o que pode, o que consegue alcançar. Entre um trago e outro do cigarro. Entre um trago e outro, traz à tona o que imagina. Vara o mundo, sujismundo, clandestino, vira a noite escrevendo poesia. Vê o verbo enquanto vaga a madrugada embriagado... Delírio de lira ao longe.

Corri até o ônibus, quando ainda lá. Gritei, gritaram. Já quase ia, o bicho. Entrei – boa noite... bom dia! – e receberam o meu cartão. Vim, daquele jeito já dito. E aqui estou, viajando...

Preciso dormir, eu e meus micos.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Cotidiano


Fumei um cigarro satisfatório. Olhei, enviesado como o basculante, a varanda do prédio ao meu oposto. Outras gentes lá. Não quis saber, não tive interesse. Voltei pra dentro, alinhei o livro sobre a caixa de som, e pus o estojo por cima. Soprei cinzas para trás do armário. O saco plástico, há pouco catado e já bastante compacto, ignorava o suor da palma da mão. Organizado o canto, ainda que a poeira fina persista tornando as coisas foscas, sorvi o alento de que tudo pode ser desenhado, como em vidro embaçado, como quadro negro sob giz.

Parei tudo para sentar e escrever. Digitar um pouco, como todos os dias inteiros. Desta vez, ao menos, algo lúdico, lírico, onírico. Um viajar sadio, afora a dor nas costas e a disposição pífia para o futebol. Desvelar solitário – era de aquário e nós, nada. Nadamos nus, como bestas feras, ademais das camisas pólo aquático.

Um extra-sensacional delírio, que verte como água pedra abaixo, tecla trás tecla, marreta de ironia de meu irmão martelo e meu pai não-sou. Rico como um podre, forte como um touro gêmeo de outro touro, mais cabeça. Rozas na janela e milho no quintal. Áureos pingentes, dentro de uma caixa. Uma bailarina amadora, onipresente. Diretora de nós, ultra-potente. Laço feito para toda a vida, ora frouxo, ora nó.

Fumei outro cigarro, já repetitivo. Amarfanhando a guimba, ingrato quando farto o meu desejo, sigo aqui sentado. O cabelo que resta, escorrendo da testa e turvando a visão. Levanto novamente para ver o mundo, esse meu viés, e aproveito para esticar as costas castigadas. Tem um sujeito na varanda ali ao lado, ainda. A encruzilhada é mesmo interessante e algumas tardes chegam a incendiar o vale, mas precisamos fazer um rodízio, compartilhar a vista, conceder espaço, aliviar o outro, conviver com mais competência, mais amor, talvez...

Talvez, mais cigarro. Ou mais futebol. Sei lá.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Alimento da alma...

Dizia o cartaz mambembe:

"Consiga UM MILHÃO, na hora, sem complicações! Basta solicitar ao Seu Joaquim!"

Devia ser o nome do sujeito da carrocinha de milho verde...

Prato cheio

Outro dia, minha ida para o trabalho foi um prato cheio.

Em frente à entrada do metrô, me dei conta da ironia de um cara que comprava um guarda-chuva e parecia ser mais humilde que o vendedor. Produto já vendido, enquanto o primeiro se afastava, o segundo fez questão de afirmar que o guarda-chuva duraria até a copa... de 2014! La garantia, por supuesto, era él!

Depois, lançou a pérola, já um pouco gasta:

- A copa de 2014 no Brasil não vai ter, não... O mundo vai acabar em 2012!

Acho que foi a maneira como disse que me arrancou um sorriso...

Entrei na estação do metrô e, ainda na escada, arranjei uma postulante à esposa: uma moça descia uma mala enorme com a ajuda das rodinhas e, apesar de apressado como sempre, ofereci ajuda. Na verdade, estava me dando nervoso a lentidão com que ela manobrava a mala e os sobressaltos que tinha cada vez que esta despencava de um degrau para o outro. Mas, feita a proposta, ela, com uma afetação mal disfarçada, disse "se você puder, mas está pesad... Oh!", quase explodindo de contentamento quando eu levantei a tralha. Na verdade estava bem leve, e desci quase correndo como de costume. Lá embaixo, plantei o objeto no chão e recebi a gratidão estremecida:

- Obrigado, meu anjo...

- De nada...

Pensei querida, babe, minha linda, minha flor, cariño, minha deusa... Mas ela não era nada disso e, apesar de usar tratamentos desproporcionais quando dentre amigos, evito fazê-lo com desconhecidos. No caso, até por falta tempo ou gana de fomentar falsas esperanças numa passante e sua mala gigante.

Por fim, foi a coisa da franja!

Mas é preciso voltar um pouco no tempo para entender porque achei tão hilária a cena que provavelmente passaria despercebida para praticamente todo mundo.

Há alguns dias, contava uma estória para a Lili e ela me interrompeu dizendo que eu deveria cortar minha franja. Gargalhei de orgulho. Porque, antes dos aparos regulares na franjinha dela, passa-se um tempo em que todo mundo a aconselha a fazê-lo. E ela, que sabe-se lá em que foca quando olha pro espelho, provavelmente não vê a sua própria franja grande, mas a sente. Entende a situação e, quando me deu a dica, ligou o comentário das pessoas a um desconforto difuso, como as pontas dos cabelos começando a chegar à frente dos olhos, e tudo isso aos poucos cabelos que me caíam da testa aos olhos. O raciocínio dela não foi nada trivial, e eu me diverti muitíssimo com aquilo. Ademais, estou mesmo precisando cortar o cabelo. E, se ainda não o fiz, é porque o tempo de cabelinho pro lado, e os quase 10 anos de cabelo comprido, me deram inusitada adaptação (ao menos para homens) para enxergar através dos fios.

Eu no metrô, fone no ouvido, assisti a um velhinho vir esbarrando em TODAS as pessoas entre o lugar onde estava e a porta, por onde sairia. Ele, a cada esbarrão, virava para sua vítima e pedia desculpas sinceras com um sorriso cativante. A música explodindo na cabeça, e os meus olhos tomados pela ação do velho, eu sequer me apoiava em lugar algum. O observava detidamente quando me dei conta que, da calva bastante pronunciada (ele só tinha seus brancos cabelos sobre a nuca e as têmporas, estilo 'Mestre dos Magos' de cabelo curto!), bem do topo da cabeça, brotava um fio. Branco como os outros, este parecia especialmente longo. E rijo! Afinal, apesar das trombadas do simpático e sorridente senhor, das freadas e acelerações do trem e dos eventuais jatos de ar condicionado, o tal do fio permanecia estável: caía exatamente em frente ao olho esquerdo do sujeito, como se o quisesse furar...

Pensei, lá comigo, que ele devia aparar a 'franja'...

domingo, 30 de maio de 2010

Nirvana

Um indeciso, diluído em água, ficava a meio passo de seu futuro. Certeza espalhada por cada canto do quase movimento que praticava tentando subir à tona.
Esforço vão. Dragado pela situação, mantinha-se em si submerso. Afundava, denso, em frases, versos, teorias. Ele e sua lógica própra, ensimesmada. Ato reverso, ou melhor, não-ato. Fato fraco, falhando. Atitude iminente, esforço estático, ainda que franco.
Atingiu o fundo do próprio poço, resvalou na vala. Ali navegou, decadente. Comeu lama, beijou ratos, passava os dias sobre um papelão.
Mas viu a lata, pegou a lata, bebeu da lata, guardou a lata e teve uma grande idéia. Ficou igual, parado, mas de pé. Na lama, com os ratos, o papelão ali ao lado. E a lata, na mão. Caçou, da lua, um raio, que pôs pra refletir. E a luz foi guia de um desejo imenso de rever o sol.

Aquilo tudo que não mexia conspirou, aos trotes, rumo à superfície. Ele lá chegou, num lapso. Nenhum sinal de dúvida, avaçou confiante. Fez o que fez por ser-se. Foi breve consigo, porém intenso: viveu mulheres, comprou carros e passava horas com a televisão. Assistia-se.
Então, tornou-se pró-ativo, workaholic, empreendedor. Verteu o terno e engoliu a gravata. Borboleta. Um só com a pasta prata, todos os documentos, aparelhos e dinheiro. Nômade nobre, varou mais que um mundo. Quase sempre a trabalho.

Decidiu, afinal, fazer-se feliz. Meditando, iluminou-se... Destino que sempre teve (e quis).

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Universo-idade

Já faz um tempo que, enquanto conversava com um grande amigo sobre coisas banais, percebi que ele insistia em levar o assunto até um patamar não tão alto, ao ponto de que eu não conseguisse distingui-lo de uma parede, nem baixo o suficiente para ser tratado como degrau. Me sentia perdendo o ponto por pouco e, astuto que sou, soube perguntar que diabos era aquilo que ele estava fazendo. Ele, astuto que é, contou que devia tratar-se dos estudos recém iniciados. O novo milênio mal havia começado e eu, até um pouco tardiamente, descobria a eloquência adolescente das ciências sociais. Soube que, dentro delas, descontando a política, que nunca foi minha praia, os velhos mais barbudos tem cento e poucos anos. E que mulheres exóticas e sortidas igualmente interessavam-se pelo tema. Cofiei a barba, vastíssima àquela altura, e concluí que desenvolver a lábia e estudar mais lábios femininos era justamente o que eu estava precisando.

Depois do longo limbo musical, quando vivia de sonho, resolvi voltar à universidade para tentar exercitar os meus gordinhos e relaxados, embora surpreendentemente bons de bola, neurônios. Prestei o vestibular...

Classificado?

Não... Nem quase.

1ª reclassificação! E aí!?

Não... Nada.

2ª reclassificação... Foi?

Nem...

Depois disso, não sei bem onde, vi um comunicado dizendo que os interessados em concorrer a futuras reclassificações deveriam comparecer a um determinado lugar, sob risco de serem banidos para sempre do concurso. Nem sei por que fui, mas fui. Era um lugar estranho... Tinha algo a ver com enfermagem... Lá, assinei alguma coisa, e voltei pra casa...

Tampouco lembro como, mas me procuraram. Passei! Porra, tirei quase 10 na redação! Era justo... Mas passei em último... E o sujeito classificado logo a minha frente, que conheci no dia em que me apresentei para a matrícula, parecia seriamente limitado. No fundo, contudo, estávamos todos - do primeiro a mim -empatados, recebendo a mesma dádiva: os gramados do gragoatá, as peladas no fim de tarde e a famigerada 'copa de golzinho', a avenida Bob Marley, os barbudos, as beldades, as festinhas, os festões e as festas médias, o visual da baía, o pôr-do-sol desconcertante, as rodas de baralho, o xadrez introspectivo, o xadrez festivo, o xadrez noturno, o bate papo no chão, sob as árvores, os dois bancos de kombi, os assuntos baldios, alguns loucos varridos, outros por panos passados, a goiabeira, as guerras mundiais nos tabuleiros, o Sistema sob críticas, chacotas, estudos,  o Sistema sobre todos, uma mulher, a filha e alguns dos melhores amigos que se pode conseguir. Tinha até aulas nos intervalos disso tudo.

Difícil saber se valeu a pena.

Pena que acabou.

Velho Francisco

Estou perplexo com a persistencia do resfriado que está morando em mim nas últimas semanas. Passei pela fase dos primeiros e esparsos espirros, a da produção incessante de coriza e afins, e acabo de chegar à insuportável fase da tosse seca. Por sorte, já estou preparado psicologicamente para escutar o chiste pré-histórico de que alguém perdeu um cachorro com os mesmos sintomas.

De toda forma, o pior é que meu sistema imunológico não se decide entre me derrubar de vez, ou esculachar logo esses malditos, magrinhos, fracos e minúsculos vírus da gripe. Convenhamos, ainda se fosse gripe aviária, suína, espanhola ou qualquer outra prima rica, vá lá, mas ficar dando sopa pra um resfriado!?

Bem, tá certo que eu estou dificultando as coisas pra ele: até ontem, não havia tirado sequer um cigarro da cota diária, e, em casa, só vestia a camisa depois de sentir os ossos gelarem. Ademais, estou dormindo de forma ridícula, muitas vezes, menos de 5 horas por noite. No fundo, sempre conto com a genética para me proteger nesses casos!

Afinal, além do nome, herdei do meu avô a saúde de ferro, o 'buraco' no peito, a virilidade desgovernante, e mesmo a careca que se insinua por baixo de meus cabelos. Sou muito grato a ele por poder desprezar, em grande conta, as consultas médicas. Não tomo remédio, não faço tratamentos e tenho a convicção de que, se a cabeça estiver em ordem, não há moléstia que me queira. Nem os mosquitos gostam muito de mim. O que é providencial, pois tampouco uso repelentes.

O velho Braz, já próximo aos 80, caminhava mais de 3 km diários, só para ir até a minha casa, catar centenas de carambolas, brincar com meu irmão mais novo (uma criança de uns 8 anos, na época), e ser trancado dentro do viveiro ou do banheiro de fora por ele, além de providenciar os consertos mais esdrúxulos nas muitas coisas quebradas que lá estavam. Voltava caminhando também. Forte como um touro, o velho só morreu porque ficou triste.

E foi assim: depois que ele começou a se perder na rua, e a ser encontrado varrendo espaços públicos, não o deixaram mais sair de casa. O alzheimer veio devagar e, no princípio, quando ele embolava algumas palavras, refletia: "tô ruim hoje!" Mas no início do fim já não se podia compreender nenhuma palavra do que dizia, ele urinava pelos cantos da casa e comia quantas vezes lhe fosse oferecido o maior dos pratos de peão. Minha avó, única pessoa que cuidava dele, não podia sair que o velho ia pra janela, chamá-la aos gritos. E assim ficava até que ela voltasse.

Sempre dura, filha única, minha mãe não tinha condição de pagar sequer um plano de saúde para o velho, imagine uma enfermeira para ajudar a vó. Resumindo, acho que meu pai aceitou dar uma força com os custos e resolvemos colocar o velho no asilo pra tentar salvar a velha, que definhava a olhos vistos depois de tantos anos de cuidado.

Nunca me esqueço do dia que fomos ajudar a levá-lo: eu e meu irmão o amparamos nas escadas e o encaixamos no taxi. Minha mãe vinha atrás, dizendo, como que para uma criança, que íamos dar um passeio. Ele não devia sair havia alguns meses; mesmo assim, a informação poderia ser factível para uma pessoa que já não falava coisa com coisa, nem reconhecia ninguém. Mas não... Enquanto o taxi manobrava, de frente para o prédio onde vivera boa parte de sua vida e jamais voltaria a ver, meu avô Braz, completamente maluco de alzheirmer, chorou.

A mente humana é mesmo um mistério. E jamais saberemos se ele chorou por saudade de outros tempos vividos ali, se por medo do lugar para onde o levávamos, ou da morte, se por tisteza de ter acabado daquele jeito - dando tanto trabalho depois de cuidar de todo mundo. Sabe-se lá pensando em quê, se foi o velho, que quase ninguém sabia que chamava Francisco.

E, claro, não deu outra. Nos primeiros dias, parecia bem. Melhorando até, pelo fato de poder voltar a caminhar fora do apartamento, pegar sol. Mas, um mês depois, ligaram para dizer que ele fora internado. Pneumonia. Hoje, tenho dúvidas se estou triste por estar gripado, ou o contrário, mas essa pneumonia do velho não dá margem a outras interpretações: ele assumia que entregava os pontos e havia, finalmente, decidido se deixar morrer.

Depois de uma vida de pagamentos de planos de saúde exorbitantes, minha mãe tinha ficado sem grana para ajudar a custear o pagamento do dele. Afinal, o que ele ganhava como aposentado, sequer cobria o valor pedido. Resultado: quarto improvisado (acho que era uma copa) no Antônio Pedro, hospital público de Niterói. Não sei se por sorte, ele estava sozinho no 'quarto'. Um traço de luxo. Fui convocado para montar guarda lá por uma noite. E fui, contrariado.

Lá estava o meu avô, mastigando sem parar a boca sem dentes, deitado numa cama, vazado por tubos que tentava arrancar insistentemente. Os olhos flamejavam em minha direção e não demonstravam o mais remoto entendimento de minhas ponderações: que se acalmasse e que, daquela forma, se feririra com as agulhas.  Pedi ajuda a uma enfermeira, que lhe desse algo que sossegasse o leão. Ela disse que não havia nada, e que poderia amarrá-lo, se eu permitisse.

Amarrar!? Nunca!, pensei... Mas, passadas poucas horas, liguei para o meu irmão, pedindo ajuda depois de surtar de tanto repetir o movimento de afastar a mão esquerda dos tubos, e deixei que atassem a mão teimosa à cama.

Passamos a noite lá. Eu e Marcelo. O velho, com aquela sutil capacidade de compreensão que derramara na lágrima do taxi, fazia as contas, e tentava refletir sobre como seria dali pra frente, donde não tem mais volta. Talvez pedisse para caminhar, pela última vez que fosse, para a vassoura mais próxima, para tentar ajudar em alguma coisa. Hoje imagino que teríamos feito tudo diferente, e, provavelmente, levaríamos ele para passear pelo jardim do hospital, embora já fosse noite e o quadro tão crítico. Mas éramos adolescentes aborrecidos demais por perder uma noite de videogame para passar a penúltima noite de vida do cara que nos ensinou a nadar ao lado dele.

Seu Francisco Braz foi um sujeito muito simples. E tenho orgulho de ser, de alguma forma, a continuação dele, independentemente de ter lá meus complexos. Acho que não consigo saber exatamente o quanto aprendi com ele. O interesse pelos gravadores de fita K7, a maneira muito particular de torcer pelo flamengo, o sobrenome-apelido que, em mim, acabou pegando por conta da forma como passei, em determinada altura, a assinar meus e-mails... Foi-se um Braz, que deixou comigo o nome dele. E eu até já passei adiante, mas ainda tenho muito tempo meu. Preciso, portanto, pensar melhor sobre o que fazer com o que ainda me resta - árdua tarefa. Afinal, pelos meus cálcuos, tenho mais 80 anos de vida (sim, acho que vou aos 110!). Espero que seja suficiente.

Esse meu resfriado, agora que me aliei a um spray de própolis, com sorte, sobrevive uns 2 dias mais. Se tanto! E, não fosse por ele, talvez eu não lembrasse do vô.

A vida é cheia de nuanças mesmo!

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Brincadeiras

Os tempos de atendente de caixa econômica me ensinaram a ter uma paciência inabalável quando estou esperando para ser atendido. Depois de receber das filas doses maciças de magia negra, mandingas, vudu, olhares furiosos e mesmo reclamações formais por abandonar o posto por alguns segundos para buscar uma impressão, sem a qual não poderia terminar o atendimento em curso, tento não devolver o que recebi na época quando sou eu o cliente. Muitas vezes, subi para mastigar minha comida fria, já depois das três da tarde, e  - tenho certeza! - alguém perguntou (ao menos internamente) aonde estava indo aquele filho da puta. Assim, por mais que filas e lentidões continuem me irritando, como irritam virtualmente todo mundo, tento não passar minhas energias negativas para o mártir do capitalismo que está do outro lado do balcão.

Por isso, quando entrei na sala dedicada a torcida organizada do Flamengo, que fica num predinho simpático no centro do Rio, para comprar o meu ingresso para o próximo jogo, não me importei em aguardar numa suposta fila, atrás de dois sujeitos que estavam por ali quando cheguei. De dentro do balcão, contudo, um dos três que lá estavam me perguntou o que eu queria, ao que confessei o interesse nos ingressos. Dois.

A partir daí, atuou a psicodelia! O negão forte que estava a minha frente na suposta fila (era camarada dos atendentes, e estava ali de lero-lero, ou mesmo trabalhando), disparou:

- Mas não vai comprar ingresso aqui com esses brinquinhos!

Sereno, vasculhava a carteira para pegar o dinheiro necessário e levantei os olhos, incrédulo:

- Tá de sacanagem?

Pra quê!? O negão, enfurecido, deu um murro no balcão e perguntava, sem muita fluência no português, que porra era aquela, como podia, se eu estava maluco, se eu tinha perdido a noção... Ciente de que estava na sede de uma torcida organizada, e do que seus membros costumam fazer por diversão, tratei de acalmar as coisas. Continuava sereno, até porque os outros quatro caras que estavam lá pareciam mais amistosos e mesmo acostumados aos arroubos do nosso amigo furioso, que deve ser um soldado raso, no máximo. Ademais, todos pediam que ele se acalmasse, dizendo que, para algumas coisas, bastava conversar. E ele se afastou um pouco, ao ponto de eu conseguir me sentir seguro para pedir esclarecimentos.

Então li, incrédulo, o cartaz que dizia que era proibida a entrada de pessoas vestidas com camisas de outras equipes (ok, é justo) ou usando brincos! Só isso! Aparentemente, cuecas na cabeça, melancias no pescoço e mesmo uma drag queen inteira, 'montadíssima', desde que sem brincos ou uniformes da torcida arco-íris, poderiam entrar com naturalidade no reduto da organizada.

Não sem antes perguntar, mais uma vez, se eu precisava mesmo tirar os brincos para trocar meu dinheiro pelos ingressos (afinal, me parecia nitidamente que alguns dos atendentes não eram tão rígidos com a regra, e eu já estava lá dentro havia alguns minutos, com os brincos), ouvi, ainda mais incrédulo, a explicação do sujeito tatuado de dentro do balcão. Eles eram soldados do flamengo e, munidos deste estatuto, importavam algumas regras do exército brasileiro. Ahhhhhh... Tá...

De fato, isso explicava outro evento insólito, acontecido um pouco mais cedo: liguei pra lá, para perguntar sobre a disponibilidade dos ingressos e a eventualidade de filas. Acho que fui atendido pelo tal soldado:

- Quem é!?
- Como assim? Meu nome é Marcos, mas acho que você não me conhece...
- De que pelotão, compadre!?
- Pelotão!? Pelotão nenhum, mestre... (podia ter dito que era só um mercenário, mas só me ocorreu agora!)
- Então é 'setentaconto'...
- Ok, obrig...

De volta à sala... Enquanto o tatuado me explicava as regras, um outro cara, que estava do lado de fora com o nosso soldado quando cheguei, me ajudava a pegar a bolinha (quicava incrivelmente, a puta!) do piercing que me faz as vezes de brinco solitário na destra. Já havia sacado o par de argolas da canhota e, com sinceridade, pedia desculpa pelo mal entendido, por desconhecer e ter transgredido as regras. Eles, aparentemente acharam tranquilo. O soltado, não.

Então, despido de meus aretes, pude colocar minhas mãos sobre os sonhados ingressos! "Vamo Flamengo, porra!", exclamei entusiasmado, ao que os amigos aprovaram, exultantes. O soldado, não.

No fim, não cheguei ao ponto de compreender a hierarquia a fundo, mas o branquelo tatuado me pareceu um sargento, e os outros três, ao menos cabos, ou mesmo tenentes desta instituição insólita. E não só porque conversavam com desenvoltura sobre o que eu comentava (que jogadores usam brinco, a não convocação do Adriano para copa e o adversário do Fla no dia seguinte), mas sim pela força da voz de comando sobre o cão de guarda que, se não se mostrou simpático em nenhum momento, conseguiu nutrir por mim uma indiferença reconfortante. Para a minha integridade física, pelo menos...


Hoje, vou ao Maracanã e, até por via das dúvidas, vou para o meio da facção adversária, como de costume.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Cubo mágico

"Eu tentei de tudo"...

...mas nunca resolvi, se bem me lembro, uma face sequer deste intrigante brinquedo.

Hoje, estava sofrendo para entender como posso resgatar os tais pontos do meu cartão de crédito, e acabei me deparando com este site com informação exaustiva, gráficos impressionantes e mesmo vídeos (que não vi daqui do trabalho) sobre a magia do cubo...

http://www.montarcubomagico.com.br/

Sinceramente, pensei em comprar um!

domingo, 2 de maio de 2010

Entreouvido no trânsito

O sujeito bota a cabeça pra fora do seu carro esportivo e olha pra trás, onde um negão forte está debruçado na janela de sua caminhonente, e dispara:

- Tu é 'mó' maizena, compadre!

Ao que o outro retruca:

- Tá maluco, me'rmão? Eu sou nescau...

quarta-feira, 28 de abril de 2010

O monstro...

Já contei alguma coisa sobre meu amigo Bruno Monstro por aqui. Se não me engano, comentei sobre quanto me divirto com sua incompetência em conter instintos animais, e que o cara é praticamente feito só de músculos, coração e impulsos... No que aqui relato, não poderia ser diferente.

Combinei com ele que veríamos juntos todos os jogos do flamengo nesta libertadores... Sempre que o jogo fosse no Maraca, lá estaríamos. E mais: se o time chegasse lá, iríamos ao jogo fora da semi e da final, especialmente se eles se dessem por aqui, nos hermanos do sul. Isso nos pareceu suficiente para sagrar o Flamengo campeão das américas.

Mas desde que eu fui para Argentina, o time caiu muito de rendimento. Mesmo na libertadores, empatamos um e perdemos outro... Logo, a primeira coisa que fiz, quando voltei, foi ligar pro Monstro e perguntar o que estava acontecendo. Ele, que estava no maior do mundo para a semi-final do Carioca, disse que não sabia, mas que tudo estaria resolvido quando voltássemos a nos reunir para assistir aos jogos do Mengo!

Assim, topei a programação sugerida, e fui beber na chopeira que demos (eu mais dois amigos) para ele como presente de desquite. Não me pareceu nada funcional o aparato, mas ele a trata como uma filha... Na verdade, acho que não trato a Lili tão bem quanto ele trata a chopeira... Sou mais ríspido...

Depois de resumirmos os assuntos importantes, assistimos juntos ao horripilante jogo do Flamengo na Libertadores contra o universidade de não sei onde. Perdemos de dois a zero, e o time pareceu que nem entrou em campo... Foi triste. O Bruno, inclusive, antecipou em uns vinte minutos o comentário do narrador: 'é o pior jogo do flamengo nos últimos tempos'... Foi mesmo...

Mas, embora ainda não soubéssemos, a noite estava começando... Saímos, ele para comprar cigarro e eu para a casa da namorada. Impossível não fumar compulsivamente com todo o desgosto. Descíamos a escada quando me dei conta que havia esquecido minha carteira. Voltamos e eu assisti a cenas bizarras de duelo entre o dono da casa e sua fechadura. Tentei também abrir a porta, sem sucesso... Ele explicou que deixou a chave boa com a moça da faxina, pra que não acontecesse com ela o que nos acontecia, e ficou com a ruim. Mas estava ruim mesmo a chave, não abria de jeito nenhum... Até que:

- Ih, bróder! Ihhh!

Sim, a chave quebrou, deixando o seu melhor pedaço dentro da fechadura. Minha primeira sugestão foi que arrombássemos a porta (minha carteira!), e achei hilário como o Monstro se pôs imediatamente em posição de demolição. Se errasse a porta e acertasse a parede, entraria do mesmo jeito. Em tempo, por sorte, pensei em procurarmos um chaveiro e, cena impagável, vi o cara olhar para cima e tentar refletir. Acho que funcionou, porque ele abandonou os instintos e colocou o 'modo de ataque' em suspensão...
Em suma, eu estava sem dinheiro, sem vale transporte, sem vale alimentação, e o Bruno sem casa... Mais de meia-noite em Vila Isabel... Bem, ao menos ele tinha a pochete... E isso, para ele, é muito!

De fato, o problema é que a pochete dá superpoderes ao meu amigo. E ele recusou a oferta para dormir na casa da minha namorada, pra tentar a sorte pela noite... Tinha certeza que, pela manhã, o orçamento de 120 reais para abrir a porta seria significativamente diminuído (e foi mesmo, saiu por 40) e preferia esperar pelo sol a ter acesso imediato à sua residência. Outro problema é que a sorte nem sempre está ao lado de meu camarada e, frustrados os iniciais e mirabolantes planos, acabou num hotel qualquer, por lá mesmo, e perdeu o dia seguinte de trabalho arrumando alguém para abrir a porta. Bem, considerando a miríade de desdobramentos possíveis para a noite do cara, acho até que a sorte, apesar de tudo, sorriu pra ele.

É na casa desse sujeito que estou morando enquanto o meu apartamento não fica pronto... Sorte minha!

Argentina querida...

Os Argentinos reclamam de tudo. Simpatizei de cara, ranzinza que sou.

Na milonga, vibravam com suas músicas. O tango tocado ao vivo, sem amplificação, saía de dedos e gargantas que nos intervalos diziam que o silêncio é o melhor aplauso. E agradeciam a tudo, aplauso, trocados, atenção, silêncio...

Dois sujeitos cantavam especialmente bem. Para aqueles, o silêncio se faria, mesmo que estivesse muito mais bêbado ou ruidoso o pequeno público do pequeno local. Um pela potência da voz e o virtuosismo do amigo que acompanhava à sua com outra guitrarra, o outro pelos trejeitos, pelo lenço escorrido do pescoço e pela boca exageradamente aberta para deixar escapar em um fio, lindíssimo, a primeira frase da canção: "que risa...".

Não vi do que reclamar... Aplaudi o que pude, extasiado.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Imitações

Já me perguntaram se era eu o sujeito que aparece numa participação estapafúrdia em Os Normais 2 (que, diga-se, é médio). Não, não era. Mas o sujeito, não me lembro bem se de cima do nariz pra baixo ou de baixo do nariz pra cima, era mesmo muito parecido comigo. Uma semelhança um pouco constrangedora, até mesmo pelos trejeitos que, embora me pareça que não, acho que tenho. Mas não, não era eu. Era mais um desses indivíduos que ganham a vida me imitando. Alguns, ilustres desconhecidos, como meu sósia e amigo Sidney. Outros com alguma circulação na mídia...

Tem o Oswaldo... Montes Claros... Não! Montengro! Oswaldo Montenegro. Me imita desde moço, esse rapaz. Dizem que faz umas músicas, mas não ouço. Na verdade, mal conheço. É que com Osvaldo tenho algumas rusgas. Gostava de Paloma, e ela já dava sinais de abertura quando ele apareceu. E eu acho que isso é furar-olho. Por motivos afetivos, não ando com gente assim.

Ademais, tem o cara! E esse eu considero amigo... Nos falamos sempre. Ele me chama Braz, e eu contesto Jota. Um tipo fora de série. Me imita quando pode, porque a fama acabou com ele, matou seu tempo. Ele ainda não aceita o assédio e tem vergonha de umas cicatrizes. Tolera mal não ser deixado em paz, e sempre pisca quando tira fotos. Prefere Guedes, que herdou da mãe, mas o povo insiste em chamá-lo de Jesus Cristo.

Há pouco cansou de tudo e foi pra Machu Pichu, onde canta mantras e vive só de luz. Mas manda e-mails regularmente, e já apareceu de repente pra umas cervejas. Somos compadres, e muito parecidos. Mas eu pego mais mulher que Ele, talvez por ter dado uma limpada no meu visual. Por mais que eu diga: barba rente é o canal; ele insiste em manter-se cabeludo e o bigode esconde o seu sorriso. Jota é quase um caso perdido...

Ele é muito mais popular, acho que sou mais preciso.

Desígnio

Discorria sobre os acontecimentos da noite anterior enquanto o cigarro, deposto no cinzeiro quase morto, terminava de esvair-se. Arfava desconexa, aferrada que estava com a vividez da lembrança. Cenas, cheiros, sabores, dores e ruídos praticamente reais lhe perpassavam o corpo. Ela eriçava, encolhida ao meu lado. Mentia o mínimo possível e muitas palavras escapavam por pouco do trincar dos dentes. Rosto desfeito, lágrimas secas inundando cada sulco, contava baixo. Explicações precisas, frases feitas para um desgosto recente. Escutei, calado para além dos suspiros. E disparei o que pude do que concluí. O raro efeito sentido, consolo somente, deixou-a respirar. E o abraço apertado cedeu por um instante, enquanto o corpo se enchia de alento. Um belo momento, dos que não alcançam filmes ou fotografias, mais feito de sentimento do que coisa dita. Um silêncio cego, furioso em seu apego à situação inteira. Se a ele se seguisse um grito, não seria estranho. Mas, ali, manteve-se firme, calando tudo, menos o pensamento do par. Cada qual com sua linha, voava longe, num divagar impreciso. Ela e a lembrança, ele e o consolo, o abraço e o suspiro... Cacos de um mito particular, refazendo-se. Contas de vidro. Conto onírico. Delírio mútuo. Desígnio.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Dengos

Devido à multidão de mosquitos inocentes (apesar de seus hábitos alimentares doentios) que nos cerca, resolveram lançar ao ar venenos que os matasse. A expansão do surto epidêmico, normalmente confinada às zonas periféricas – ou centrais, mas mais humildes –, acabou alcançando as áreas mais nobres. A bem da verdade, estava, tranqüila, sobre a cidade inteira, a epidemia. Ainda sem culpa maior do que ter aproveitado as condições favoráveis para se reproduzir de forma otimizada, resolveram, os mosquitos, dividir o mundo conosco. Afinal, vida de mosquito, além de dura, é curta! E eles devem ter algum entusiasmo pelo sexo também.

Voltemos ao veneno. Daquele que lançaram pelos ares e que, enquanto os seres humanos – e muitas outras formas amigas – passam ilesos, lesa seriamente o mosquito. Na verdade, lesa seriamente sua família inteira.

Não temos culpa de serem tão pequenos os mosquitos... Caso pudéssemos, e tivéssemos as ferramentas para isso, castraríamos, faríamos modificações genéticas para dar-lhes civilidade à mesa, e fazer de suas picadas uma delícia também para nós. Mas não podemos, e castramos matando mesmo.

O que passa é que as borboletas, que têm tanto de mosquito quanto de gente, também não gostaram do veneno. Apesar de espécie amiga, afim aos usos lúdicos dos olhos humanos e, portanto, por eles razoavelmente respeitados, padecido seu lado mosquito, já não podiam ser. E também morriam. Os humanos não chegaram a ficar tristes. Cada qual culpou quem pôde pelo fato de a epidemia ter derrubado tanta gente importante, e matado alguns anônimos (das partes periféricas, ou tristes). Todos querem o fim da farra do mosquito. Debatem sobre isso na televisão... Querem que ele volte para o Egito, de onde não deveria ter saído. Isso se o fato de aqui haver destes do Egito não nos faça ignorar a existência, também nefasta para nós, dos nativos mosquitos. E também, claro, do fato de que o que aqui temos veio junto com os homens que trouxeram da áfrica, seus braços, filhos e mosquitos, dentre muitos outros aparatos.

Retomemos as borboletas. Elas também sumiram. Mas sabemos que, assim como o mosquito, algumas delas sobraram para contar estórias e seduzir seus parceiros para, num lapso de glória, reformar o ciclo e dar-lhe novo andamento. E o provável é que, voltando os mosquitos, voltarão as borboletas, mesmo que seja numa próxima (ou distante) estação.

Eu me vanglorio por ter estado com uma borboleta por algum tempo. Talvez a tenha salvado do extermínio. Talvez estivesse gestando dos seus, ou preparando-se para isso. Talvez eu os tenha salvado todos. Preciso confessar que a borboleta ficou grudada numa mancha de cerveja seca que havia no chão de minha sala, fruto de uma festa humana. Achei que estivesse, como as do veneno, morta. Perguntei, me respondeu que não, que estava bem. Na verdade, o cheiro de cerveja na sala seria suficiente para embriagar uma criança e acredito que a borboleta tenha passado por bons e maus bocados, sinceramente bêbada.

Depois de um tempo, ela ficou presa entre os dois vidros da janela de correr. Ignoro como tenha chegado até ali, mas parecia bem, hiperexposta em uma vitrine. Consegui, por fim, manobrar para libertá-la e, para minha surpresa, após quase uma semana de latência, ela voou...

Eis que hoje, algumas semanas depois, uma outra borboleta me invade a casa. Num quarto mais alto, uma janela maior, soberana sobre os vidros superpostos. Livre. Um pouco menor, cores mais brandas. Variações de ocre, amarelo, marrom e uma vermelhidão puxada para os precedentes tons. Esta parecia um mapa mundi, daqueles antigos, que os homens que aqui chegaram com seus mosquitos e sua forma peculiar de fazer as coisas – e, em suma, levar a vida – costumavam desenhar naquele tempo.

Essa ficou comigo, mas por menos tempo. E foi bom assim também.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Da sorte das moscas e dos médiuns

Eu penso muito. E, talvez por isso, passo boa parte do tempo em que caminho pelas ruas olhando pra baixo. Mas não me detenho nos detalhes dos calçamentos, nem no provável cardápio dos cachorros que se aliviam pelas ruas, nem na diversidade de detritos que boa parte das pessoas consegue, simplesmente, atirar ao piso. Na verdade, enquanto penso, tenho os olhos baixos, mas desfocados...

Assim, nos lapsos entre os pensamentos, acabo escutando cada pérola. E rio sozinho, às vezes só por dentro, de tanta coisa que o povo fala.

Me diverti muito (embora quase ninguém para quem contei tenha achado qualquer graça) quando ouvi o sujeito que vendia raquetes eletrificadas dizer:

- Mata mosca, mata mosquito... E quando morreu, já sabe: tá morto!

Achei hilário! (sério!)

Mas hoje foi um pouco diferente... Depois de três semanas longe da cidade, ouvi um novo chamado, numa voz aguda:

- Chico Xavier, Chico Xavier... O filme!

Pensei um pouco nele, no Chico, o Xavier... Da mãozinha no rosto para psicografar, e toda a estória com a peruca... Então, ressoou, grave como um trovão, uma voz pra lá do além:

- CHICO XAVIEEEEEER...

Tive medo... E nem virei para conferir...

terça-feira, 30 de março de 2010

Taxi!


Dei-me ao luxo de um taxi. Do contrário andaria bastante com uma mochila e um violão às costas. Já entrei dizendo que não tinha dinheiro. O motorista, sabe-se lá porque, simpatizou. Principalmente quando pedi que passassemos por um caixa eletrônico, e que sugerisse o melhor caminho. Do que, ao dizer, concordei: excelente. Ele gabou-se e fez-se serelepe com sinais e algumas regras de trânsito. Saiu esquisito do posto onde paramos, e avançou sobre o cruzamento subsequente... Seguiu em frente, quando era o caso de virar, ainda que para mais longe do destino por conta da orientação das mãos. Prestimoso, poupou a volta cruzando a avenida, logo depois de um ônibus que seguia no sentido oposto... Atravessando a rua, para onde íamos clandestinos, o casal. Que assustou-se, e chegou a xingar baixinho, mas saiu ileso de nossa pressa e nossos desvarios. Ele então bateu com o cotovelo no meu, sem largar o volante, e sussurou algo. Riu de nervoso, tentou retratar-se em palvras, sem muito sucesso. Chegamos mais cedo, deveras. Ele desprezou os centavos que dei para alcançar a marcação precisa do taxímetro. E inocentou-se assim.

A pressa

Dia desses, atropelei uma senhora. Estava a pé, por sorte. E a senhora era sólida, pra minha tranquilidade.
Olhava para o outro lado da rua. Vinha no pique, trotando. Correndo por trás do ônibus, dentro da rua, pra evitar o ritmo de romaria que acomete a imensa maioria das pessoas.
Quando vi, era tarde. Acho que ainda tentei segurá-la. Tenho quase certeza que não consegui, ainda que talvez tenha amortecido a queda. As pessoas, já escandalizadas, murmurando mandingas contra minha conduta absurda: derrubar a senhora com a brutalidade do peito.
Não me fiz de cretino. Clamei, cedo, por Deus. Abandonei por um instante a pressa para ajudar a mulher, que já levantava. Levantei-a num susto. E orei por meu destino em voz alta, buscando perdão. Olhava-a nos olhos enquanto passava a mão por seu braço molhado embora aparentemente são. Pedi desculpas de todas as formas que conheço e, quiçá, o povo que sequer ajuntava, inclusive, já simpatizasse comigo e comentasse, cada um para si, que esta vida afobada que escolhemos tem seus percalços.
Engoli a multidão de desculpas para ouvir o que me dizia a senhora: "estamos, os dois, com pressa, meu filho. Só isso". Eu, que já tremia, quase chorei... E segui em direção à barca, ainda a tempo. Corri mais, claro. Mais atento, certamente.
E pensava no restinho de caminho: tenho que mudar... Mas, mudar o quê? Não sabia! Afinal estamos, praticamente todos, atrasados para algo. A vida urge, ruge a urbe. E a gente, simplesmente, aceita. Se deixa levar.
Se preciso, até rezo pra que a tal senhora esteja bem. Mas já passa de meia-noite... Tenho que trabalhar amanhã e talvez precise ficar para escrever. Amanhã devo sair correndo, mais uma vez... Que as senhoras tomem outro rumo.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Curiosidade mata a gente...

Legal essa coisa de ter um mapa mostrando de onde partem os acessos ao blog. Me sinto especialmente cosmopolita ao ver o mundo coalhado de pontos vermelhos...

Mas quem diabos sera o indiano que acessou uma vez ao blog??

Perdido, certamente... Deve, inclusive, ter pensado que ancorou em Portugal quando intuiu que se trata do portugues o que aqui se escreve... 500 anos depois, a historia se repete!

Fui de bicicleta mesmo

Fui de bicicleta mesmo. A primeira puxada já deu o tom. Do alto da Hermenegildo, onde chegara a pé havia alguns dias, sai com a magrela, pedalando acima. Comecei a entender as dificuldades possíveis, embora não consiga precisar porque mantive em mente que, de alguma forma, seria fácil. E subia. Lembrava de leve do cigarrinho tragado, minutos antes, num rasgo de ousadia. E subia. Até o Curvelo foi o custo. Sabe-lo começou a compensar a ousadia com alguns pequenos medos. Mas tudo fluiu a contento. E fui. Do Curvelo ao Silvestre, Santa Teresa inteira, ali exposta em cima daquele morro, de dentro daquelas casas, debruçada das janelas. Era um poente poético. O transe. Alguns laivos de beleza absurda escapavam das árvores densas. O mar de jaqueiras fogosas invadia o asfalto com fúria de cheiro outro que não gasolina. E os carros passando sobre o escarro de vida que é o fruto despedaçado no chão. Concede-lhe a fresta, qu’ele há de nascer. Nascer jaqueira, de rasgar concreto com as pernas e exalar a tensão adversa daquilo que de si apodrece para voltar à vida. Duvidei, mas fui subindo. Dali procurei as placas, e tinha mesmo a sensação de estar próximo. Não estava, mas fui subindo. Começava a ponderar que descer seria uma delícia. Como foi, de fato. Mas ainda não podia saber. Precisava chegar, e cheguei a apostar comigo. Quem sabe, sequer botar os pés no chão. Mas pus, na indecisão da estrada, bifurcante e translocada, de um lugar confuso. Ali perdi um pouco a aposta. Pensava que não poderia retomar sem voltar alguns passos. Mas me concentrei e consegui. E foi bom. Por que, dali, não parei. E fui subindo. Não comentei tanto quanto queria a Santa. E ela é linda, de se querer lá morar. Com ela, nela. Sem mais ninguém. Isso tudo, e eu ia indo, como sempre subindo. Novos momentos de pensar em parar. Diminuía muitíssimo o passo, o compasso que me pedala ladeira acima. E eu indo, subindo. Devagar, mas sempre. Via Cristo. Ele não me via. Via o mar. Eu via mato. E ia, subindo.
    Houve momento de hesitação frente a turba de turistas distantes ou não que queriam não só ver, mas que o Cristo os visse. E iam subindo. Eles de trem, eu de bicicleta. Ia bem, subindo. Desviei de todos os carros, que até então também vinham subindo, mas congestionavam-se num mesmo querer de um espaço pouco para tantos roncos e trocos e importâncias. Era um momento importante. E eu estava próximo, embora ainda subindo. Ia e a música veio. Uma cancela cancelava os carros e o veículo mais rápido chegamos a ser: eu e a bike. Coisa só, que subia. E a música dentro dos ouvidos vazios, esvaziando a cabeça cheia. Musica pra si guardada, que move o homem em suas manias. As más, as médias e as melhores manias. Todas copulando e sorrindo e dizendo o que querem umas para as outras. Multidão de mitos que nos povoa. Clareia consciência, conhece. Carinho carcará. Caminho, camará, compadre leva eu. E eu vou. Subindo. Só com a bicicleta e o esforço contínuo, embora variável em intensidade, ímpeto e depuração. Tudo no mesmo dom. Somando. Construindo junto. Tudo pra subir. Chegava a cantar pra subir. E ia. Subindo.
Até que lá cheguei. Havia água. Fui nela. Eu nela. Era maga, mas fria. Massagens se iam, só dela em mim. Eu nela, um detalhe. Estava molhado e, inundado, cedia. Tremia. Era frio. Pulava. Era sapo. Partia. Descia.

    A santa, os trilhos, os freios e o poder da velocidade nas mãos. Algo de pegar pelo fio. E depender do equilíbrio que ainda não tem para não cair.
    E não cair.
    Desce na classe, mas vence...

    A gente.

Em 04 03 2008