domingo, 30 de maio de 2010

Nirvana

Um indeciso, diluído em água, ficava a meio passo de seu futuro. Certeza espalhada por cada canto do quase movimento que praticava tentando subir à tona.
Esforço vão. Dragado pela situação, mantinha-se em si submerso. Afundava, denso, em frases, versos, teorias. Ele e sua lógica própra, ensimesmada. Ato reverso, ou melhor, não-ato. Fato fraco, falhando. Atitude iminente, esforço estático, ainda que franco.
Atingiu o fundo do próprio poço, resvalou na vala. Ali navegou, decadente. Comeu lama, beijou ratos, passava os dias sobre um papelão.
Mas viu a lata, pegou a lata, bebeu da lata, guardou a lata e teve uma grande idéia. Ficou igual, parado, mas de pé. Na lama, com os ratos, o papelão ali ao lado. E a lata, na mão. Caçou, da lua, um raio, que pôs pra refletir. E a luz foi guia de um desejo imenso de rever o sol.

Aquilo tudo que não mexia conspirou, aos trotes, rumo à superfície. Ele lá chegou, num lapso. Nenhum sinal de dúvida, avaçou confiante. Fez o que fez por ser-se. Foi breve consigo, porém intenso: viveu mulheres, comprou carros e passava horas com a televisão. Assistia-se.
Então, tornou-se pró-ativo, workaholic, empreendedor. Verteu o terno e engoliu a gravata. Borboleta. Um só com a pasta prata, todos os documentos, aparelhos e dinheiro. Nômade nobre, varou mais que um mundo. Quase sempre a trabalho.

Decidiu, afinal, fazer-se feliz. Meditando, iluminou-se... Destino que sempre teve (e quis).

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Universo-idade

Já faz um tempo que, enquanto conversava com um grande amigo sobre coisas banais, percebi que ele insistia em levar o assunto até um patamar não tão alto, ao ponto de que eu não conseguisse distingui-lo de uma parede, nem baixo o suficiente para ser tratado como degrau. Me sentia perdendo o ponto por pouco e, astuto que sou, soube perguntar que diabos era aquilo que ele estava fazendo. Ele, astuto que é, contou que devia tratar-se dos estudos recém iniciados. O novo milênio mal havia começado e eu, até um pouco tardiamente, descobria a eloquência adolescente das ciências sociais. Soube que, dentro delas, descontando a política, que nunca foi minha praia, os velhos mais barbudos tem cento e poucos anos. E que mulheres exóticas e sortidas igualmente interessavam-se pelo tema. Cofiei a barba, vastíssima àquela altura, e concluí que desenvolver a lábia e estudar mais lábios femininos era justamente o que eu estava precisando.

Depois do longo limbo musical, quando vivia de sonho, resolvi voltar à universidade para tentar exercitar os meus gordinhos e relaxados, embora surpreendentemente bons de bola, neurônios. Prestei o vestibular...

Classificado?

Não... Nem quase.

1ª reclassificação! E aí!?

Não... Nada.

2ª reclassificação... Foi?

Nem...

Depois disso, não sei bem onde, vi um comunicado dizendo que os interessados em concorrer a futuras reclassificações deveriam comparecer a um determinado lugar, sob risco de serem banidos para sempre do concurso. Nem sei por que fui, mas fui. Era um lugar estranho... Tinha algo a ver com enfermagem... Lá, assinei alguma coisa, e voltei pra casa...

Tampouco lembro como, mas me procuraram. Passei! Porra, tirei quase 10 na redação! Era justo... Mas passei em último... E o sujeito classificado logo a minha frente, que conheci no dia em que me apresentei para a matrícula, parecia seriamente limitado. No fundo, contudo, estávamos todos - do primeiro a mim -empatados, recebendo a mesma dádiva: os gramados do gragoatá, as peladas no fim de tarde e a famigerada 'copa de golzinho', a avenida Bob Marley, os barbudos, as beldades, as festinhas, os festões e as festas médias, o visual da baía, o pôr-do-sol desconcertante, as rodas de baralho, o xadrez introspectivo, o xadrez festivo, o xadrez noturno, o bate papo no chão, sob as árvores, os dois bancos de kombi, os assuntos baldios, alguns loucos varridos, outros por panos passados, a goiabeira, as guerras mundiais nos tabuleiros, o Sistema sob críticas, chacotas, estudos,  o Sistema sobre todos, uma mulher, a filha e alguns dos melhores amigos que se pode conseguir. Tinha até aulas nos intervalos disso tudo.

Difícil saber se valeu a pena.

Pena que acabou.

Velho Francisco

Estou perplexo com a persistencia do resfriado que está morando em mim nas últimas semanas. Passei pela fase dos primeiros e esparsos espirros, a da produção incessante de coriza e afins, e acabo de chegar à insuportável fase da tosse seca. Por sorte, já estou preparado psicologicamente para escutar o chiste pré-histórico de que alguém perdeu um cachorro com os mesmos sintomas.

De toda forma, o pior é que meu sistema imunológico não se decide entre me derrubar de vez, ou esculachar logo esses malditos, magrinhos, fracos e minúsculos vírus da gripe. Convenhamos, ainda se fosse gripe aviária, suína, espanhola ou qualquer outra prima rica, vá lá, mas ficar dando sopa pra um resfriado!?

Bem, tá certo que eu estou dificultando as coisas pra ele: até ontem, não havia tirado sequer um cigarro da cota diária, e, em casa, só vestia a camisa depois de sentir os ossos gelarem. Ademais, estou dormindo de forma ridícula, muitas vezes, menos de 5 horas por noite. No fundo, sempre conto com a genética para me proteger nesses casos!

Afinal, além do nome, herdei do meu avô a saúde de ferro, o 'buraco' no peito, a virilidade desgovernante, e mesmo a careca que se insinua por baixo de meus cabelos. Sou muito grato a ele por poder desprezar, em grande conta, as consultas médicas. Não tomo remédio, não faço tratamentos e tenho a convicção de que, se a cabeça estiver em ordem, não há moléstia que me queira. Nem os mosquitos gostam muito de mim. O que é providencial, pois tampouco uso repelentes.

O velho Braz, já próximo aos 80, caminhava mais de 3 km diários, só para ir até a minha casa, catar centenas de carambolas, brincar com meu irmão mais novo (uma criança de uns 8 anos, na época), e ser trancado dentro do viveiro ou do banheiro de fora por ele, além de providenciar os consertos mais esdrúxulos nas muitas coisas quebradas que lá estavam. Voltava caminhando também. Forte como um touro, o velho só morreu porque ficou triste.

E foi assim: depois que ele começou a se perder na rua, e a ser encontrado varrendo espaços públicos, não o deixaram mais sair de casa. O alzheimer veio devagar e, no princípio, quando ele embolava algumas palavras, refletia: "tô ruim hoje!" Mas no início do fim já não se podia compreender nenhuma palavra do que dizia, ele urinava pelos cantos da casa e comia quantas vezes lhe fosse oferecido o maior dos pratos de peão. Minha avó, única pessoa que cuidava dele, não podia sair que o velho ia pra janela, chamá-la aos gritos. E assim ficava até que ela voltasse.

Sempre dura, filha única, minha mãe não tinha condição de pagar sequer um plano de saúde para o velho, imagine uma enfermeira para ajudar a vó. Resumindo, acho que meu pai aceitou dar uma força com os custos e resolvemos colocar o velho no asilo pra tentar salvar a velha, que definhava a olhos vistos depois de tantos anos de cuidado.

Nunca me esqueço do dia que fomos ajudar a levá-lo: eu e meu irmão o amparamos nas escadas e o encaixamos no taxi. Minha mãe vinha atrás, dizendo, como que para uma criança, que íamos dar um passeio. Ele não devia sair havia alguns meses; mesmo assim, a informação poderia ser factível para uma pessoa que já não falava coisa com coisa, nem reconhecia ninguém. Mas não... Enquanto o taxi manobrava, de frente para o prédio onde vivera boa parte de sua vida e jamais voltaria a ver, meu avô Braz, completamente maluco de alzheirmer, chorou.

A mente humana é mesmo um mistério. E jamais saberemos se ele chorou por saudade de outros tempos vividos ali, se por medo do lugar para onde o levávamos, ou da morte, se por tisteza de ter acabado daquele jeito - dando tanto trabalho depois de cuidar de todo mundo. Sabe-se lá pensando em quê, se foi o velho, que quase ninguém sabia que chamava Francisco.

E, claro, não deu outra. Nos primeiros dias, parecia bem. Melhorando até, pelo fato de poder voltar a caminhar fora do apartamento, pegar sol. Mas, um mês depois, ligaram para dizer que ele fora internado. Pneumonia. Hoje, tenho dúvidas se estou triste por estar gripado, ou o contrário, mas essa pneumonia do velho não dá margem a outras interpretações: ele assumia que entregava os pontos e havia, finalmente, decidido se deixar morrer.

Depois de uma vida de pagamentos de planos de saúde exorbitantes, minha mãe tinha ficado sem grana para ajudar a custear o pagamento do dele. Afinal, o que ele ganhava como aposentado, sequer cobria o valor pedido. Resultado: quarto improvisado (acho que era uma copa) no Antônio Pedro, hospital público de Niterói. Não sei se por sorte, ele estava sozinho no 'quarto'. Um traço de luxo. Fui convocado para montar guarda lá por uma noite. E fui, contrariado.

Lá estava o meu avô, mastigando sem parar a boca sem dentes, deitado numa cama, vazado por tubos que tentava arrancar insistentemente. Os olhos flamejavam em minha direção e não demonstravam o mais remoto entendimento de minhas ponderações: que se acalmasse e que, daquela forma, se feririra com as agulhas.  Pedi ajuda a uma enfermeira, que lhe desse algo que sossegasse o leão. Ela disse que não havia nada, e que poderia amarrá-lo, se eu permitisse.

Amarrar!? Nunca!, pensei... Mas, passadas poucas horas, liguei para o meu irmão, pedindo ajuda depois de surtar de tanto repetir o movimento de afastar a mão esquerda dos tubos, e deixei que atassem a mão teimosa à cama.

Passamos a noite lá. Eu e Marcelo. O velho, com aquela sutil capacidade de compreensão que derramara na lágrima do taxi, fazia as contas, e tentava refletir sobre como seria dali pra frente, donde não tem mais volta. Talvez pedisse para caminhar, pela última vez que fosse, para a vassoura mais próxima, para tentar ajudar em alguma coisa. Hoje imagino que teríamos feito tudo diferente, e, provavelmente, levaríamos ele para passear pelo jardim do hospital, embora já fosse noite e o quadro tão crítico. Mas éramos adolescentes aborrecidos demais por perder uma noite de videogame para passar a penúltima noite de vida do cara que nos ensinou a nadar ao lado dele.

Seu Francisco Braz foi um sujeito muito simples. E tenho orgulho de ser, de alguma forma, a continuação dele, independentemente de ter lá meus complexos. Acho que não consigo saber exatamente o quanto aprendi com ele. O interesse pelos gravadores de fita K7, a maneira muito particular de torcer pelo flamengo, o sobrenome-apelido que, em mim, acabou pegando por conta da forma como passei, em determinada altura, a assinar meus e-mails... Foi-se um Braz, que deixou comigo o nome dele. E eu até já passei adiante, mas ainda tenho muito tempo meu. Preciso, portanto, pensar melhor sobre o que fazer com o que ainda me resta - árdua tarefa. Afinal, pelos meus cálcuos, tenho mais 80 anos de vida (sim, acho que vou aos 110!). Espero que seja suficiente.

Esse meu resfriado, agora que me aliei a um spray de própolis, com sorte, sobrevive uns 2 dias mais. Se tanto! E, não fosse por ele, talvez eu não lembrasse do vô.

A vida é cheia de nuanças mesmo!

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Brincadeiras

Os tempos de atendente de caixa econômica me ensinaram a ter uma paciência inabalável quando estou esperando para ser atendido. Depois de receber das filas doses maciças de magia negra, mandingas, vudu, olhares furiosos e mesmo reclamações formais por abandonar o posto por alguns segundos para buscar uma impressão, sem a qual não poderia terminar o atendimento em curso, tento não devolver o que recebi na época quando sou eu o cliente. Muitas vezes, subi para mastigar minha comida fria, já depois das três da tarde, e  - tenho certeza! - alguém perguntou (ao menos internamente) aonde estava indo aquele filho da puta. Assim, por mais que filas e lentidões continuem me irritando, como irritam virtualmente todo mundo, tento não passar minhas energias negativas para o mártir do capitalismo que está do outro lado do balcão.

Por isso, quando entrei na sala dedicada a torcida organizada do Flamengo, que fica num predinho simpático no centro do Rio, para comprar o meu ingresso para o próximo jogo, não me importei em aguardar numa suposta fila, atrás de dois sujeitos que estavam por ali quando cheguei. De dentro do balcão, contudo, um dos três que lá estavam me perguntou o que eu queria, ao que confessei o interesse nos ingressos. Dois.

A partir daí, atuou a psicodelia! O negão forte que estava a minha frente na suposta fila (era camarada dos atendentes, e estava ali de lero-lero, ou mesmo trabalhando), disparou:

- Mas não vai comprar ingresso aqui com esses brinquinhos!

Sereno, vasculhava a carteira para pegar o dinheiro necessário e levantei os olhos, incrédulo:

- Tá de sacanagem?

Pra quê!? O negão, enfurecido, deu um murro no balcão e perguntava, sem muita fluência no português, que porra era aquela, como podia, se eu estava maluco, se eu tinha perdido a noção... Ciente de que estava na sede de uma torcida organizada, e do que seus membros costumam fazer por diversão, tratei de acalmar as coisas. Continuava sereno, até porque os outros quatro caras que estavam lá pareciam mais amistosos e mesmo acostumados aos arroubos do nosso amigo furioso, que deve ser um soldado raso, no máximo. Ademais, todos pediam que ele se acalmasse, dizendo que, para algumas coisas, bastava conversar. E ele se afastou um pouco, ao ponto de eu conseguir me sentir seguro para pedir esclarecimentos.

Então li, incrédulo, o cartaz que dizia que era proibida a entrada de pessoas vestidas com camisas de outras equipes (ok, é justo) ou usando brincos! Só isso! Aparentemente, cuecas na cabeça, melancias no pescoço e mesmo uma drag queen inteira, 'montadíssima', desde que sem brincos ou uniformes da torcida arco-íris, poderiam entrar com naturalidade no reduto da organizada.

Não sem antes perguntar, mais uma vez, se eu precisava mesmo tirar os brincos para trocar meu dinheiro pelos ingressos (afinal, me parecia nitidamente que alguns dos atendentes não eram tão rígidos com a regra, e eu já estava lá dentro havia alguns minutos, com os brincos), ouvi, ainda mais incrédulo, a explicação do sujeito tatuado de dentro do balcão. Eles eram soldados do flamengo e, munidos deste estatuto, importavam algumas regras do exército brasileiro. Ahhhhhh... Tá...

De fato, isso explicava outro evento insólito, acontecido um pouco mais cedo: liguei pra lá, para perguntar sobre a disponibilidade dos ingressos e a eventualidade de filas. Acho que fui atendido pelo tal soldado:

- Quem é!?
- Como assim? Meu nome é Marcos, mas acho que você não me conhece...
- De que pelotão, compadre!?
- Pelotão!? Pelotão nenhum, mestre... (podia ter dito que era só um mercenário, mas só me ocorreu agora!)
- Então é 'setentaconto'...
- Ok, obrig...

De volta à sala... Enquanto o tatuado me explicava as regras, um outro cara, que estava do lado de fora com o nosso soldado quando cheguei, me ajudava a pegar a bolinha (quicava incrivelmente, a puta!) do piercing que me faz as vezes de brinco solitário na destra. Já havia sacado o par de argolas da canhota e, com sinceridade, pedia desculpa pelo mal entendido, por desconhecer e ter transgredido as regras. Eles, aparentemente acharam tranquilo. O soltado, não.

Então, despido de meus aretes, pude colocar minhas mãos sobre os sonhados ingressos! "Vamo Flamengo, porra!", exclamei entusiasmado, ao que os amigos aprovaram, exultantes. O soldado, não.

No fim, não cheguei ao ponto de compreender a hierarquia a fundo, mas o branquelo tatuado me pareceu um sargento, e os outros três, ao menos cabos, ou mesmo tenentes desta instituição insólita. E não só porque conversavam com desenvoltura sobre o que eu comentava (que jogadores usam brinco, a não convocação do Adriano para copa e o adversário do Fla no dia seguinte), mas sim pela força da voz de comando sobre o cão de guarda que, se não se mostrou simpático em nenhum momento, conseguiu nutrir por mim uma indiferença reconfortante. Para a minha integridade física, pelo menos...


Hoje, vou ao Maracanã e, até por via das dúvidas, vou para o meio da facção adversária, como de costume.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Cubo mágico

"Eu tentei de tudo"...

...mas nunca resolvi, se bem me lembro, uma face sequer deste intrigante brinquedo.

Hoje, estava sofrendo para entender como posso resgatar os tais pontos do meu cartão de crédito, e acabei me deparando com este site com informação exaustiva, gráficos impressionantes e mesmo vídeos (que não vi daqui do trabalho) sobre a magia do cubo...

http://www.montarcubomagico.com.br/

Sinceramente, pensei em comprar um!

domingo, 2 de maio de 2010

Entreouvido no trânsito

O sujeito bota a cabeça pra fora do seu carro esportivo e olha pra trás, onde um negão forte está debruçado na janela de sua caminhonente, e dispara:

- Tu é 'mó' maizena, compadre!

Ao que o outro retruca:

- Tá maluco, me'rmão? Eu sou nescau...