quinta-feira, 27 de maio de 2010

Velho Francisco

Estou perplexo com a persistencia do resfriado que está morando em mim nas últimas semanas. Passei pela fase dos primeiros e esparsos espirros, a da produção incessante de coriza e afins, e acabo de chegar à insuportável fase da tosse seca. Por sorte, já estou preparado psicologicamente para escutar o chiste pré-histórico de que alguém perdeu um cachorro com os mesmos sintomas.

De toda forma, o pior é que meu sistema imunológico não se decide entre me derrubar de vez, ou esculachar logo esses malditos, magrinhos, fracos e minúsculos vírus da gripe. Convenhamos, ainda se fosse gripe aviária, suína, espanhola ou qualquer outra prima rica, vá lá, mas ficar dando sopa pra um resfriado!?

Bem, tá certo que eu estou dificultando as coisas pra ele: até ontem, não havia tirado sequer um cigarro da cota diária, e, em casa, só vestia a camisa depois de sentir os ossos gelarem. Ademais, estou dormindo de forma ridícula, muitas vezes, menos de 5 horas por noite. No fundo, sempre conto com a genética para me proteger nesses casos!

Afinal, além do nome, herdei do meu avô a saúde de ferro, o 'buraco' no peito, a virilidade desgovernante, e mesmo a careca que se insinua por baixo de meus cabelos. Sou muito grato a ele por poder desprezar, em grande conta, as consultas médicas. Não tomo remédio, não faço tratamentos e tenho a convicção de que, se a cabeça estiver em ordem, não há moléstia que me queira. Nem os mosquitos gostam muito de mim. O que é providencial, pois tampouco uso repelentes.

O velho Braz, já próximo aos 80, caminhava mais de 3 km diários, só para ir até a minha casa, catar centenas de carambolas, brincar com meu irmão mais novo (uma criança de uns 8 anos, na época), e ser trancado dentro do viveiro ou do banheiro de fora por ele, além de providenciar os consertos mais esdrúxulos nas muitas coisas quebradas que lá estavam. Voltava caminhando também. Forte como um touro, o velho só morreu porque ficou triste.

E foi assim: depois que ele começou a se perder na rua, e a ser encontrado varrendo espaços públicos, não o deixaram mais sair de casa. O alzheimer veio devagar e, no princípio, quando ele embolava algumas palavras, refletia: "tô ruim hoje!" Mas no início do fim já não se podia compreender nenhuma palavra do que dizia, ele urinava pelos cantos da casa e comia quantas vezes lhe fosse oferecido o maior dos pratos de peão. Minha avó, única pessoa que cuidava dele, não podia sair que o velho ia pra janela, chamá-la aos gritos. E assim ficava até que ela voltasse.

Sempre dura, filha única, minha mãe não tinha condição de pagar sequer um plano de saúde para o velho, imagine uma enfermeira para ajudar a vó. Resumindo, acho que meu pai aceitou dar uma força com os custos e resolvemos colocar o velho no asilo pra tentar salvar a velha, que definhava a olhos vistos depois de tantos anos de cuidado.

Nunca me esqueço do dia que fomos ajudar a levá-lo: eu e meu irmão o amparamos nas escadas e o encaixamos no taxi. Minha mãe vinha atrás, dizendo, como que para uma criança, que íamos dar um passeio. Ele não devia sair havia alguns meses; mesmo assim, a informação poderia ser factível para uma pessoa que já não falava coisa com coisa, nem reconhecia ninguém. Mas não... Enquanto o taxi manobrava, de frente para o prédio onde vivera boa parte de sua vida e jamais voltaria a ver, meu avô Braz, completamente maluco de alzheirmer, chorou.

A mente humana é mesmo um mistério. E jamais saberemos se ele chorou por saudade de outros tempos vividos ali, se por medo do lugar para onde o levávamos, ou da morte, se por tisteza de ter acabado daquele jeito - dando tanto trabalho depois de cuidar de todo mundo. Sabe-se lá pensando em quê, se foi o velho, que quase ninguém sabia que chamava Francisco.

E, claro, não deu outra. Nos primeiros dias, parecia bem. Melhorando até, pelo fato de poder voltar a caminhar fora do apartamento, pegar sol. Mas, um mês depois, ligaram para dizer que ele fora internado. Pneumonia. Hoje, tenho dúvidas se estou triste por estar gripado, ou o contrário, mas essa pneumonia do velho não dá margem a outras interpretações: ele assumia que entregava os pontos e havia, finalmente, decidido se deixar morrer.

Depois de uma vida de pagamentos de planos de saúde exorbitantes, minha mãe tinha ficado sem grana para ajudar a custear o pagamento do dele. Afinal, o que ele ganhava como aposentado, sequer cobria o valor pedido. Resultado: quarto improvisado (acho que era uma copa) no Antônio Pedro, hospital público de Niterói. Não sei se por sorte, ele estava sozinho no 'quarto'. Um traço de luxo. Fui convocado para montar guarda lá por uma noite. E fui, contrariado.

Lá estava o meu avô, mastigando sem parar a boca sem dentes, deitado numa cama, vazado por tubos que tentava arrancar insistentemente. Os olhos flamejavam em minha direção e não demonstravam o mais remoto entendimento de minhas ponderações: que se acalmasse e que, daquela forma, se feririra com as agulhas.  Pedi ajuda a uma enfermeira, que lhe desse algo que sossegasse o leão. Ela disse que não havia nada, e que poderia amarrá-lo, se eu permitisse.

Amarrar!? Nunca!, pensei... Mas, passadas poucas horas, liguei para o meu irmão, pedindo ajuda depois de surtar de tanto repetir o movimento de afastar a mão esquerda dos tubos, e deixei que atassem a mão teimosa à cama.

Passamos a noite lá. Eu e Marcelo. O velho, com aquela sutil capacidade de compreensão que derramara na lágrima do taxi, fazia as contas, e tentava refletir sobre como seria dali pra frente, donde não tem mais volta. Talvez pedisse para caminhar, pela última vez que fosse, para a vassoura mais próxima, para tentar ajudar em alguma coisa. Hoje imagino que teríamos feito tudo diferente, e, provavelmente, levaríamos ele para passear pelo jardim do hospital, embora já fosse noite e o quadro tão crítico. Mas éramos adolescentes aborrecidos demais por perder uma noite de videogame para passar a penúltima noite de vida do cara que nos ensinou a nadar ao lado dele.

Seu Francisco Braz foi um sujeito muito simples. E tenho orgulho de ser, de alguma forma, a continuação dele, independentemente de ter lá meus complexos. Acho que não consigo saber exatamente o quanto aprendi com ele. O interesse pelos gravadores de fita K7, a maneira muito particular de torcer pelo flamengo, o sobrenome-apelido que, em mim, acabou pegando por conta da forma como passei, em determinada altura, a assinar meus e-mails... Foi-se um Braz, que deixou comigo o nome dele. E eu até já passei adiante, mas ainda tenho muito tempo meu. Preciso, portanto, pensar melhor sobre o que fazer com o que ainda me resta - árdua tarefa. Afinal, pelos meus cálcuos, tenho mais 80 anos de vida (sim, acho que vou aos 110!). Espero que seja suficiente.

Esse meu resfriado, agora que me aliei a um spray de própolis, com sorte, sobrevive uns 2 dias mais. Se tanto! E, não fosse por ele, talvez eu não lembrasse do vô.

A vida é cheia de nuanças mesmo!

4 comentários:

  1. choro incontido, coração em disparada, saudades infindas.

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  2. Marcos, sou filha de Manoel Braz, irmão mais velho do Tio Braz. Apesar de não nos conhecermos, nossa história se cruza em muitos momentos. Sou Christina Braz, e toda a minha infância foi recheada de falas, risos e ternas histórias...tenho um profundo amor por esta família. Ser BRAZ,é um presente da vida.

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  3. Marcos,
    Li o seu momento de reVER o passado. Coloco-me ao seu lado nesse amor lindo pelo nosso passado.
    você escreve lindamente...
    Luciani Sorrentino

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