segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Blocos

Escrever em bloco pode ser complicado. Um meu mui amigo disse que meu estilo, de espaçar parágrafos, estaria ultrapassado. Engolido pela grande rede, um método pelo qual tenho afeto, talvez até apego, de fato soçobra nas constantes renovações da escrita. Novos acordos firmando-se sem meu consentimento; dialetos festivos da classe média informatizada, de gente metade robô, metade gente mesmo, que entendo cada vez menos. Minha fluência, fugidia já nos tempos de maior estabilidade gramatico-poética, torna-se proto-poesia de um discurso sonso. Me sinto presa de meus segredos. E como mudar de assunto, se não se pode pontuar uma frase de efeito e ter o tempo de pular a linha antes de embarcar numa ideia conexa? Igual fazíamos nos cadernos, nossos cada vez mais ameaçados de extinção anti-heróis da infância e eventuais companheiros de pós-adolescência. A concretude do bloco, afinal, não dá conta de descrever a forma espasmódica do pensamento. Gosto dos travessões, dos apostos. Gosto das lacunas que eles preenchem. Mas um parágrafo te obriga a parar e pensar. Faz bem mais do que um ponto, muito mais que uma vírgula, mais talvez do que algumas reticências... Ditados e lendas prescrevem paciência: rimas raras são pequenas clarabóias entre a alma do autor e a do sujeito que lê. Pseudônimos inúteis, estamos sempre revelados pelo que escrevemos. Uma nudez inventada pelo ritmo das palavras, expressões, figuras de linguagem e acentos que escolhemos. Auto-exposição controlada, ainda que precariamente.


Só precisamos pular a linha. Ainda assim, muito de vez em quando.

(Originalmente publicado em http://prosadasemana.blogspot.com/)

sábado, 19 de novembro de 2011

Novo barato

Às três da manhã da última segunda-feira, fui tirado da cama por uma visita extremamente desagradável. Era a última madrugada de um fim-de-semana de nostalgia e esperança, dada a realização dos chás-de-fralda de dois amigos-irmãos, onde encontrei a fina flor de meu ciclo de amizades. Havia muito, não via a maioria das pessoas que ali estavam. Coincidentemente ou não, nas duas ocasiões tive a felicidade de encontrar a justa medida etílica, algo raro para alguém que, como eu, tem passado bastante tempo sem beber. E tudo isso contribuía para que eu dormisse o sono dos justos, feliz da vida novamente após considerável estiagem.


Mas não foi apenas devido ao encontro obscuro que, além de levantar da cama, desisti momentaneamente dela para começar a esboçar este relato. Afinal, acordado eu já estava desde quando percebi a presença indesejável e, por instinto, dediquei um tapa duvidoso mas certeiro ao que me roçava o pescoço e o peito. Em milésimos de segundo já estava sentado na cama perguntando – no melhor estilo maroto-travesso – “qu’é isso, qu’é isso?”

Qu’é isso!? Torci para que não fosse, mas era. Já de pé, travesseiro em punho, revi o vulto pestilento, que mirara na penumbra com os olhos da nuca, e tive a delicadeza de apenas afastá-lo com o travesseiro em que diariamente babo ou abraço para compensar as eventuais ausências da Manu.

Na hora, a reação dela foi de pânico sincero por acordar sob um sujeito de um metro e noventa munido de seu travesseiro, em pé na cama, pelado e repetindo maquinalmente uma mesma sentença. Ainda sem saber a motivação do meu desespero, ela levantou num lapso e soltou um urro de pavor, refazendo minhas perguntas mais grave e lentamente, como se sua voz estivesse em câmera lenta... Foi isso que mexeu comigo ainda enquanto ia, calma mas firmemente, buscar uma vassoura para destroçar a barata que acabara de caminhar sobre o meu peito e suas eventuais aliadas.

Fiquei balançado com aquilo, um ódio animal pelas baratas (além da atrevida, havia mais uma na porta do meu banheiro, em frente à minha cama, e mais duas na boca da casa delas, dali a alguns metros, todas alvo de minha fúria justiceira). Meus piores sentimentos, contudo, iam para a ignóbil caixa de gordura que mora no corredor ao lado. Não convivo bem com ela, nunca convivi, mas há uma anilha ancestral enterrada da porta de casa pra dentro, em frente à minha cozinha. O tampo, grotesco e medieval, até tapo com uma passadeira em razoável acerto estético. Mas o conteúdo oculto mantém-se um problema, ao menos até que me mude daqui ou uma improvável mega-operação hidráulica desvie os tubos pestilentos do meu caminho. É lá debaixo que elas vivem. Eu moro aqui em cima.

E estamos em guerra! Até então havia alguma diplomacia, as invasões eram tímidas (nada de “festa no apê” ou “caminhada sobre humanos”). Na verdade, poucas delas se apresentavam com vigor suficiente para uma boa batalha. Chegavam sempre meio grogues, sonolentas. Tampouco costumavam andar em grupos. Por isso, além da surpresa pela humilhação do break dancing no meu cangote, teve o susto pelo surto expansionista da facção rival dentre todos os insetos que convivem nesta casa (eu, em certa perspectiva, incluído). Oponente deveras complicado, dizem que nem mesmo uma hecatombe poderia exterminá-las. Questão de guerrilha apenas de ambos os lados...

Senti muita culpa pelo susto aplicado involuntariamente na Manu. Culpado por não poder, ainda, viver em um lar onde as baratas não passam tão perto da minha cama em seu caminho casa-trabalho trabalho-casa. Uma casa com menos problemas do que aquelas – boas, sem dúvida – que habitei durante a minha cada vez mais longa trajetória no planeta. Umas grandes demais, outras muito velhas, outras significativamente pequenas, e várias delas vulneráveis às investidas eventuais das malditas.

Sou ripongo incorrigível, mas não entro no barato de seres repugnantes cheios de amor para dar. Assim, possesso com a invasão e a afronta, imediatamente após ferir de morte e reunir as quatro tinhosas junto à única porta de saída, arrisquei as primeiras represálias ao desgosto simbólico de fazer-se pista de skate para baratas – acho até que a mais abusada tenha arriscado alguns passos de moonwalk nas minhas costas para conseguir me arrancar do sono profundo. Destilava, enfim, essa culpa pelo descaralho, o desapego talvez nocivo às normas, a higiene indolente e obsoleta, ou o desdém absoluto pela saúde e inteligência virtuosas que dei a sorte de contar.

Então, mesmo sem curtir inseticidas, apoderei-me do pior/melhor veneno que encontrei e fui banhar as bordas do tampo malquisto. Além de borrifar as três moribundas inimigas (uma das filhas-das-putas não me pegou as duas das seis patas que restaram e fugiu para algum lugar!?) com algum sadismo, besuntei a orla da tampa com o veneno e olhei fixamente para ela enquanto, no auge da onda do inseticida, praguejava. Permiti que meu matador serial oculto raciocinasse sobre o ódio que me transtornara. Mania nova, tenho tentado me aproveitar mesmo dos pensamentos mais malignos. E tratava-se de ódio legítimo, aquele! Plenamente útil, quiçá, em algumas situação periclitante futura.

Voltei para ver a Manu, e ela estava mais calma. Logo após seu assustador lapso de desvinculação entre a velocidade dos gestos e da fala, ela já estava sentada numa cadeira, ao lado do computador, respirando profundamente enquanto tomava cabo da situação. Pedi desculpas pela minha reação instintiva, ela compreendeu. Compreendeu também quando ralhei com ela porque reclamava em ladainha do barulho sinistro que a porta de correr do banheiro passou a fazer depois que varri uma das minhas inimigas dali debaixo para fora, para a porradaria que a esperava. Gritei que, porra, acabava de acordar com uma barata trotando nas minhas costas e, se minha porta do banheiro começou a fazer um barulho estridente, sinistro e escroto como aquele, eu tinha que resolver na hora, caralho, merda, putaqueopariu! Ela entendeu numa boa, apesar de ter criticado, posteriormente, meu requinte de ligar o aspirador de pó às três da matina.

Como pensava em dar um tratamento caprichado à questão, trocando lençóis e fronhas, tomando mais um banho e começando a vedar com cola plástica (comprei um litro com este intuito há tempos) a fresta entre minha casa e o esgoto, sugeri que a Manu fosse deitar na cama da Lis. Mas, quando eu abri o quarto da pequena, vi o quanto a cama dela estava zoneada. Quase tudo culpa minha! Aí, quase esmoreci. Mas transferi a bagunça para outro canto, oferecendo finalmente um pouso para a namorada sonolenta.

Tudo pronto, resgatei a moça. Mas dormi pessimamente. Acordava a cada rasante de mosquito e mesmo quando um simples pelo de minhas pernas se desenrolava sob o cobertor. Espasmos ordinários e uma suposta taquicardia confirmavam a intoxicação com o veneno, que provavelmente me fulminaria em alguns instantes (afinal, achei o gosto de um dos cigarros que fiz enquanto escrevia estranho, por rascante, e cheirei minha mão com paranóia, supondo encontrar vestígios do produto, que eu teria lambido acidentalmente). No fim, cochilei um pouco. E sobrevivi.

Acordei bem, mas sinto seqüelas. Afinal, sempre tive uma relação poética com as baratas, que me induzem à prosa com alguma regularidade. Mas preciso tomar medidas urgentes visando impedir que o acaso me venha despertar novamente esfregando suas pequenas patas, provavelmente sujas de merda, na cara. As baratas à espreita. Estarei aqui, de tocaia. Pois não existe refúgio para uma guerra civil – a solução é doméstica e, talvez, lenta. Tento me contentar em ser um sujeito tranqüilo. Pelo menos, sangue de barata eu sei que não tenho. Já é alguma coisa.

(Originalmente publicado em http://prosadasemana.blogspot.com/)