terça-feira, 24 de agosto de 2010

Fragmentos

Tenho preguiça de emoções fortes. Toda aquela coisa do descontrole, da agonia, dos sobressaltos, tudo isso me cansa um pouco. Até tento, sem muito sucesso, entender o que sucede comigo. Acho que me especializei em fingir um desapego que não consigo ter. Mas finjo bem. Bem demais, talvez. E acredito. Acredito no que, no fundo, não acredito. Sinto-me confuso quase sempre. Minto muito pouco, mas omito praticamente tudo. Me imagino oco, quase sem sentimentos. Mas transpiro o que escondo. Me corto, e vaza como sangue o segredo. Me exponho ao sol, e algo dentro de mim brilha. Algo que não sei o que é. E não que não queira. Quero sim, quero muito. Mas evito - quanto possa - os conselhos. Uma pretensão de descobrir o que sou sozinho. De ter o mérito todo de pacificar o convívio com as manias que me constituem. E ser alguém inteiro, embora soma de cem mil pedaços.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Comentários condensados.

Pipoca uma janela do chat do gmail. Meu jovem velho irmão, Marcelo.

15:07Ibitipoca - Maneiro.. mas não deu vontade de conhecer
  Dismação - Charmosinho, Inocente 
15:08 Vizinhança - Retrato Falado.. e reflexões Oniricas Junguianas... Gostei, porque conheço...
  talvez... 
15:09 
Planteta dos Macacos - não consigo ler.. sempre aparece algo mais interessante no caminho.
 
É... Comentários sempre ajudam...
E se eu fosse um pouco mais machadiano, como o autor do último livro que li inteiro, arriscaria:
- Quem sabe um dia não chega a sua vez de comentar, amigo que me lê!

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Vizinhança

Como praticamente qualquer pessoa de Santa Teresa, moro em mais de um lugar ao mesmo tempo. Minha casa fica na própria Santa, quase Bairro de Fátima, e a Lapa é logo ali. De lá, desci para descobrir o mundo, meio dormindo, meio sonhando, depois de promover meu desjejum tardio no mesmo lugar de todos os dias.

O fato é que tento me aferrar ao meu novo lar e suas cercanias como posso. Apenas comecei a prospectar o bar mais imundo e horroroso da região para tentar substituir o buteco que frequentava com meu amigo Bruno Monstro (foi um baque enorme ver o NOSSO bar, na ladeira dos Arcos, ser transformado num lugar bonitinho... Até no já saudoso 'Barriga' deram sumiço! Tiraram o freezer que impedia um ventilador de teto de girar; arrancaram até o próprio ventilador! Uma tragédia!).

Assim, na seara do pé-sujo radical, sem dúvidas, ainda não acertei a mão. As opções prospectadas na última 'operação bar em bar' se mostraram aquém das expectativas. Na área dos 'pé-quase-limpo', contudo, já simpatizo muito com o Bar do Peixe, onde comi como um Deus, acompanhado de minha deusa; por fim, insistindo em subir, adquiro sempre que posso, nos pratos gigantescos do Arnaudo, satisfação para uma tarde inteira de prostração digestiva. Mas aí já estamos passando a categoria dos etabelecimentos quase-engomadinhos, ao menos para o meu padrão.


No entanto, minha maior simpatia recaiu sobre um singelo muquifo alimentício onde, para meu grande espanto, as atendentes não me dão muita bola. Não sei se por conta da novidade do desprezo (eu era o rei da tendinha de pão de queijo da barca, que frequentava diariamente!), ou se pelo açaí mais barato (e, portanto, mais delicioso) do Rio de Janeiro, acabei me tornando, talvez irreversivelmente, cliente contumaz da lanchonete. Passo lá uma, ou até duas vezes no mesmo dia! Quase sempre vou de açaí com banana e um joelho/italiano que, dependendo da pressa, engulo pelo caminho mesmo.


Ali começei minha primeira peregrinação espontânea semi-voluntária por meus novos bairros. Animado pelo tédio dominical, aproveitei o inverno carioca (enquanto o frio à sombra, cortante para bermudas e chinelos, se alternava com o calor descamisante do sol aberto) para caminhar pelas ruas que percorro diariamente, além de experimentar algumas variantes. Tentei palmilhar um pouco do centro da antiga capital de meu país, eu e meus chinelos. Diminuí consideravelmente a velocidade de cruzeiro habitual e pude voltar minha atenção pontos outros que não o chão do caminho.



Sem a turba enfurecida dos dias de semana, o centro do Rio expressa, de forma ainda mais caricata, os ciclos de riqueza e decadência que parecem permear toda a história do Brasil. Enquanto um prédio semi-abandonado da extinta 'polícia central' salta, feito fortaleza, dentre as ruas estreitas e sombreadas, diversos outros foram reduzidos apenas a fachadas, muitas vezes cobertas por chapisco. No pátio do prédio policial, dois 'caveirões', embora estáticos, se impõe ameaçadores. Fiquei imaginando o sujeito lá dentro, levando e mandando bala para todo lado. E imaginei também a galera que, com horror, o observa aproximar-se perigosamente de sua casa, quando em ação. Parado, já é uma visão sinistra!

Sem a pressa de todos os dias, consegui ver, no caminho diário, diversas outras coisas incríveis! Como um prédio sem acabamento externo, feito várias casas semelhantes de uma mesma favela empilhadas uma sobre as outras, que jaz ali começo da rua do Resende, onde geralmente passo entretido com o restinho do meu açaí. Percebi sua presença - até então ignorada - por conta de uma família que esperava no portão da frente, não menos mambembe que restante do edifício, olhando pra cima e tentando conseguir contato com quem quer que procurassem lá dentro. De fato, se não há sequer reboco, não haveria de ter interfone ou elevadores. Me surpreendi e, enquanto me afastava, observava que o prédio podia ser visto por vários ângulos. Especulei sobre onde ando com a cabeça para identificá-lo pela primeira vez em mais de dois meses por aqui.


Observei também um senhorzinho, que passa os dias sentado diante de uma loja de ferragens, um torneiro, sei lá. Sempre pensei que ele trabalhasse por ali, de alguma forma. Contudo, no domingo, com todas as lojas do entorno fechadas, ele continuava lá, dando acenos para qualquer criança que passasse e emitindo seus grunidos costumeiros. Ele usa seu vale transporte como se fosse um crachá, e suspeito de que não bata muito bem da ideia.

Por fim, foi a cena mais bizarra! Um mendigo estava jogado sobre suas tralhas, em frente a uma espécie de estacionamento. A barba vasta e dura brotava do queixo levantado, tornando a figura grotesca ainda mais absurda. E não parava por aí. Do outro lado da rua, um grupinho de mulheres e crianças caprichavam, aos gritos e risos, num escândalo afetado. Ao me aproximar, me dei conta do porquê: o velho, por baixo da calça imunda, se masturbava enquanto falava coisas incompreensíveis em direção aos céus.


No sentido oposto, um senhor corado, vestido de forma casual, de olhos claros e um sorriso muito simpático, vinha disparando para mim alguma espirituosidade sobre o inusitado da situação. Apertou minha mão no instante exato em que cruzávamos o mendigo punheteiro e parecia especialmente divertido com o caso. Não entendi bem o que ele disse e, como estava fumando, ofereci as costas da mão para o imprevisto aperto. Mas acho que, mesmo sem me pronunciar com algo mais do que um sorriso, não deixamos de entender o que estávamos pensando. E telepatia casual sempre me surpreende!


Fiquei pensando, esquisito que sou, que tenho potencial para me tornar qualquer um dos dois. Falhando tudo, adoraria ficar deitado sobre minhas tralhas, em frente a um estacionamento, num domingo de sol de inverno, batendo uma e blasfemando os céus com impropérios, além do ato. Tudo indo um pouco melhor, tenho certeza que, com o avanço da idade e o retrocesso dos pudores, faria questão de cumprimentar um jovem que compartilhasse comigo essas finas ironias do universo. Naquele encontro insólito, me senti em casa, como se as duas personalidades fossem complementares a minha, como se expressássemos com nossos portes, espíritos e atitudes as pequenas nuanças que nos fazem diferentes. Ligeiramente diferentes, diga-se de passagem.

Passei, e vi um outro grupo insólito se aproximando. Com as proporções de um paralelepípedo, um sujeito corpulento empurrava um carrinho de bebê acompanhado de um senhor mais velho e um garoto de seus doze anos... Era curioso observar o cara debruçado sobre o carrinho, que parecia querer se desfazer dada a pressão desproporcional usada para movê-lo lentamente. Fiquei olhando aquilo, interessado que estava em todo o entorno. E ele ia se aproximando do mendigo, já caçoando entre os dele... Até que disparou:

- Ô velho barreiro (era igual!), aí não... Para com isso!

Ibitipoca

Foi uma dessas doideiras que a gente faz pra entender que, numa próxima vez, melhor seria pensar melhor.

Eu estava sem tirar férias há um ano e pouco e já dava os primeiros sinais de estafa. Estava ficando meio maluco. Afinal, aqui no banco temos diversas regalias, benefícios, mas, especialmente quem atravessa seu primeiro ano de serviço, não tem direito a enforcar um feriado sequer. Perdi algumas boas oportunidades com a namorada e os amigos. Em suma, não viajava desde que voltara do México direto para assinar o contrato de trabalho.

Num desses arroubos esotéricos que, vez por outra, se abatem sobre mim, decidi que iria para Ibitipoca. Os relatos que busquei na internet contribuiam para lançar uma névoa de misticismo sobre o lugar, sua natureza exótica e deveras exuberante. Pedi os primeiros dois dias de folga no meu novo emprego para esticar um fim de semana no parque nacional e vivenciar a 'revelação' que parecia estar batendo à minha porta.


Fui convencido de que encontraria um duende. No fundo, acredito que existam duendes, mas eles não têm poderes mágicos. São prestidigitadores natos que, dado seu reduzido tamanho e agilidade desconcertante, são incumbidos de furtar isqueiros para acender a infinidade de incensos consumidos no mundo da fantasia. Afinal, não há produção material por lá e corre solta a notícia de que fadas, gnomos, anjos, curupiras e até mesmo o saci pererê acabaram viciados na tecnologia da chama fácil, abandonando definitivamente suas formas arcaicas de produção de fogo. Por isso os isqueiros desaparecem com tanta frequência, às vezes de dentro dos bolsos! E os malditos duendes, dizem, gozam de enorme prestígio no universo paralelo dado o monopólio do fornecimentos do aparato!

Bem, claro que não é nada disso. Nem nas fadas acredito, imagine os duendes. Mas (quase tão exdrúxulo quanto acreditar neles) levei mesmo alguma fé de que havia alguma 'mensagem' para mim em Ibitipoca, já não me lembro bem por quê. Tinha nada, mas só soube quando voltei. E ainda estou contando da ida. Cabe a mim não antecipar os fatos.

Para começar, preciso confessar que ir de ônibus daqui para o interior de Minas é uma tarefa inglória. Não sei ao certo quanto tardei, mas especulo algo entre 9 e 12 horas. E a cada minuto que me afastava, em um dos três onibus que peguei para alcançar meu destino, imaginava quão mais tortuosa não seria a volta... Felizmente, não sou de desistir no meio do caminho (se necessário, desisto no início mesmo), especialmente das empreitadas mais sem sentido a que me dedico. Ademais, era um desafio. E acho que gosto de (alguns) desafios.

Consegui levar um monte de tralha, tudo só pra mim. Me orgulhei de caminhar quase uma dezena de quilômetros com tanto equipamento (e peso!). Num rasgo de luxo, em geral, levo até meu travesseiro de penas. As pernas ainda aguentam praticamente qualquer coisa, e eu abuso, castigando ombros e costas. Quando fiz a mala, sequer desconfiava das subidas generosas, sem sequer uma remota chance de conseguir carona, que enfrentaria.

Cheguei na entrada do parque já quase na hora de fechar. Paguei o que, por ali estar, já devia. E fui entrando... Mas não havia chegado, não ainda. O sujeito da portaria informou que a área de camping estava a mais de um quilômetro dali... Então, tive o meu primeiro choque andarilho. Mais um quilometro, naquelas condições, certamente pareceriam três! E pareceram, apesar do declive da via que, de certa forma, desperdiçava quase todo o esforço que fizera para subir... Ah, uma bicicleta numa hora dessas! Não tinha...

Terminei de montar a barraca, já escuro, com a ajuda da lanterna que comprei no único comércio dentro do parque e, para quem estava, como eu, traumatizado com a distância do centro do vilarejo, único estabelecimento comercial do universo. Me dei conta, com desespero, que havia gastado muito do dinheiro (em espécie) que levava pelo caminho. Pelos meus cálculos, além da grana para os ônibus da volta (até o caixa eletrônico mais 'próximo'), tinha o suficiente para uma refeição diária e uns dois pacotes de biscoito, para quando a fome apertasse no intervalo entre um almoço e outro. Cara, nessas horas é foda ser pão-duro! Custava ter tirado mais alguns reais e, se fosse o caso, voltar com eles pra casa? Custa! Custa muito, quase sempre.

Adriano era o nome do sujeito muito simpático que cuidava da venda. Ele foi, por diversas vezes, minha única companhia no parque. Quando cheguei, servia cerveja para o chefe da reserva. Carioca gente boa, morava lá havia alguns anos. Conversei rapidamente com a dupla e fui para meu acampamento solitário. Só na barraca, só no camping... Quando me afastei das luzes da venda, vi acender o céu mais impressionante que já vi na vida. Ainda olhava para o alto embasbacado quando senti a tremedeira! Ossos já gelados... Frio!

Corri para meu abrigo tremendo horrivelmente e descobri que, dentre minha muita tralha, não havia cobertores suficientes... Afinal, fui presenteado com uma das noites mais frias do ano até então... Algo entre três e sete graus, não lembro bem... Dormi pessimamente, só quando começou a amanhecer, no curto intervalo entre o frio congelante da noite e o calor insólito do sol alto que lá fazia.

Relatei o ocorrido a meu novo amigo que, extremamente prestimoso, me ofereceu um cobertor. Ele também, ciente de minha situação financeira, caprichava muito nos almoços, que consumia depois de uma tarde de caminhadas. Me ofereceu drogas leves, como alguns goles de um conhaque terrível. Eu aceitava os mimos, muito por necessidade, mas por perceber que ele havia se conformado com o fato de que eu traçava suas refeições com disposição invulgar, mas não estava disposto a comê-lo.

De dia, era o caminhar...

Paisagens realmente alucinantes, rio e rochas poderosas. Mas água fria, de gelar num átimo todo o calor acumulado no caminho. E que caminhos. Pontos em que, equidistante entre o nada e o nada, me sentia mais sozinho do que nunca. E brincava comigo.


Para resumir a questão... Ibitipoca é lindo, deveras. Mas trate de levar o seu amor consigo! E faça um favor para o seu amigo: vá de carro!

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Dismação

- Papai, um dia eu ganhei um ovo de páscoa de um coelho de verdade.
- É filha? Que coelho?
- Aquele branquinho, que pula assim, ó!
- Ah, e ele te falou que o ovo era pra você, ou te entregou... Como foi?
- Coelho não fala, né, papai!
- Mas então como você soube que o ovo era pra você?

Alguns instantes de dispersão fizeram justiça à implicância da pergunta e, então, ela segurou a ponta do dedo, hesitante, e levou o indicador direito esticado para o topo da cabeça...

- Isso só existe na dismação, né, papai?
- Existe onde, filha?!
- Na dismação!
- É filha, só lá mesmo. Como você sabe!?

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Planeta dos macacos

Algum tempo atrás, verão a pino, fez calor. Repercutiu no coletivo um alarde sobre o aquecimento global e os efeitos nefastos que a maneira como levamos nossas vidas parece ter sobre a preservação do planeta e, com ela, a possibilidade de reproduzirmo-nos. Para que possamos continuar a conversar nos coletivos (lotados ou nem tanto) sobre coisas como esta, vem se impondo uma questão preocupante: a humanidade seria um vírus que, com seus modos, estaria esgotando o planeta, gastando tudo para seu melhor fluir?

Lembro de que, quando eu era pequeno, tinha medo da bomba atômica. Fui dos últimos a nascer ainda na década de 70, e cresci assistindo filmes de guerras contra comunistas. Mero garoto, temia que alguém apertasse um botão e eu não pudesse acordar no dia seguinte, ou acordasse em sérias dificuldades. Certamente não saberia tanto quanto imagino saber hoje das possíveis conseqüências de uma hecatombe nuclear... Não precisava tanto. Tinha medo do botão, e de suas funcionalidades. Ignorava o posicionamento geográfico de Cuba. Desconhecia que, naqueles tempos, já havia algo sobre onzes de setembro. O medo simples de criança era o de não poder continuar sendo... Criança, por exemplo.

Hoje, creio, as crianças têm medo do aquecimento global, ondas gigantes, inundações... (Parece, pelo menos, que o botão voltou pra mão de ‘Deus’!) É um desdobramento confuso, que reveste o super-poder humano de uma nova capacidade de autodestruição. Não mais a crise dos mísseis, mera alegoria caricata, no patético embate de arsenais sempre prestes a serem acionados (enquanto pequenas guerras locais confrontavam os blocos, dando vazão a profusa produção de toda sorte de armamentos mais leves do que bombas atômicas), mas uma crise que adere, implícita, mesmo ao melhor funcionamento da vida Capital.

Reproduzir nossos debates e, orientados pelo norte da razão, ampliar o raio de ação de nossos esforços implicam em conhecer a relação entre o nosso ritmo – frenético – e o ritmo do meio. Urge reconhecer que há um descompasso, mas... Caberia tanto alarde?

Vejamos um exemplo: Há um sujeito que se considera, digamos, ecológico. Desculpem a ironia com que uso o termo, embora sequer se possa notar aqui (algo como um repuxo de sobrancelha e uma torção específica da boca, simultâneos à pronúncia, que transcrevo por ser imperceptível para a linguagem escrita). Enfim, esse sujeito é vegetariano (e pensa no direito dos animais, equiparando, de certa forma, senciência e consciência), separa seu lixo (apesar de saber do fato de que quem o coleta dá outro tratamento a sua divisão entre material orgânico e reciclável), e deixa o carro em casa durante a semana para ir trabalhar (até por ser mais barato, às vezes mais rápido e se poder cochilar pelos coletivos, ainda que sob o risco de perder um debate como o que se traça neste escrito).  Esse sujeito fez uma sessão de ioga, almoçou bem, jantou uma salada, e bebeu um suco e muita água durante o dia. Foi dormir cedo, como é de seu costume. Acordou cedo, e sentiu... Precisava se aliviar da pressão que toda aquela boa comida do dia anterior fazia nas suas intimidades. Foi ao banheiro, com sinceridade. E lá ficou. Largou-se ao ofício de esvaziar-se que, convenhamos, todos nós sentimos apesar da diversidade das regularidades.

Lá ficaram os detritos, que uma descarga pródiga encarregou-se de lavar. Levando pra onde, não se pode importar. Mas lá foi ela, e suponhamos que tenha chegado a uma estação de tratamento de esgoto, tenha sido processada e atirada, por fim, ao mar por um emissário muito comprido. ‘A minha merda está lá, ao longe’, sonhamos... E seguimos dormindo com a consciência tranqüila. Vaca viva, lixos distintos separados aos sacos (sacos unidos, contudo), carro na garagem e cocô naufragado em mar aberto e distante. Somos felizes.

No entanto, com o perdão da escatologia, detenhamo-nos na cagada. Existem, hoje, algumas técnicas de compostagem que podem dar um tratamento – diverso do proposto até aqui – ao esgoto. Nos rudimentos de meu conhecimento de cidadão urbano que come carne, joga lixo até no chão, e só não sai de carro porque não tem um, sei que se pode preparar um sanitário seco, do qual sairia adubo depois de alguns meses de fermentação e ação de bactérias. Sei também que com um pouco mais de dinheiro, o metano produzido poderia servir gás para alimentação de fogões e, quiçá (com a disponibilidade de muita merda), alguns aquecedores.

Em suma, o que quero dizer é que hoje, cada um tem o seu botão. A destruição do planeta parece depender de cada um de nós. Já há tecnologia para uma vida saudável, sem maiores atritos (do que os já estabelecidos, que são muitos) entre o ser humano e a Terra. Mas falta um novo paradigma. As pessoas precisam gastar uma parte maior do seu tempo com questões de sobrevivência, subsistência, ao invés de entregar mais do que o terço que dormimos diariamente ao trabalho. O caminho pela vida precisa ser entendido de forma mais complexa do que simples venda de tempo em troca dos trocados que nos custeiam. Para que se possa pensar, enfim, em algo mais do que ‘conforto’ nos sempre esporádicos momentos de ‘lazer’. As vidas precisam ser mais harmônicas. Afinal, a rotina é desgastante para todos, mas todos, virtualmente sem exceção, compactuamos com ela, com seus méritos, suas políticas.

Os autodenominados ‘revolucionários’ de hoje são uns chatos, quase tanto quanto eu e minha inconsistentes teorias, manias e ignorâncias. Seres urbanos, adeptos dos debates, em sua estúpida maioria. Debates urbanos, para a manutenção e desenvolvimento da urbe, embora para novos fins. Talvez, contudo, a urbe precise se subdesenvolver. Temos bons veículos, podemos ficar mais distantes... Nos centros, onde tudo é próximo, se pode andar a pé. Nas casas, chamamos amigos, que vêm com rapidez e economia. Não precisa nem de tele-transporte, o caminho é bom. Haveria festas. Um pouco como há hoje. Enfim. Nós somos sempre isso. E somos cada dia mais... Uma continuidade dentre o devir constante. O neo-absolutismo... Um grupo, o planeta todo.

Eu, por exemplo, queria muito que o mundo fosse um pouco mais como eu queria que o mundo fosse. E o problema, quiçá, seja este: tem muita gente parecida comigo, que prefere ater-se com vigor a suas convicções e preguiças, ao invés de aceitar algumas divergências e trabalhar junto por uma nova forma de existência.