quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Vizinhança

Como praticamente qualquer pessoa de Santa Teresa, moro em mais de um lugar ao mesmo tempo. Minha casa fica na própria Santa, quase Bairro de Fátima, e a Lapa é logo ali. De lá, desci para descobrir o mundo, meio dormindo, meio sonhando, depois de promover meu desjejum tardio no mesmo lugar de todos os dias.

O fato é que tento me aferrar ao meu novo lar e suas cercanias como posso. Apenas comecei a prospectar o bar mais imundo e horroroso da região para tentar substituir o buteco que frequentava com meu amigo Bruno Monstro (foi um baque enorme ver o NOSSO bar, na ladeira dos Arcos, ser transformado num lugar bonitinho... Até no já saudoso 'Barriga' deram sumiço! Tiraram o freezer que impedia um ventilador de teto de girar; arrancaram até o próprio ventilador! Uma tragédia!).

Assim, na seara do pé-sujo radical, sem dúvidas, ainda não acertei a mão. As opções prospectadas na última 'operação bar em bar' se mostraram aquém das expectativas. Na área dos 'pé-quase-limpo', contudo, já simpatizo muito com o Bar do Peixe, onde comi como um Deus, acompanhado de minha deusa; por fim, insistindo em subir, adquiro sempre que posso, nos pratos gigantescos do Arnaudo, satisfação para uma tarde inteira de prostração digestiva. Mas aí já estamos passando a categoria dos etabelecimentos quase-engomadinhos, ao menos para o meu padrão.


No entanto, minha maior simpatia recaiu sobre um singelo muquifo alimentício onde, para meu grande espanto, as atendentes não me dão muita bola. Não sei se por conta da novidade do desprezo (eu era o rei da tendinha de pão de queijo da barca, que frequentava diariamente!), ou se pelo açaí mais barato (e, portanto, mais delicioso) do Rio de Janeiro, acabei me tornando, talvez irreversivelmente, cliente contumaz da lanchonete. Passo lá uma, ou até duas vezes no mesmo dia! Quase sempre vou de açaí com banana e um joelho/italiano que, dependendo da pressa, engulo pelo caminho mesmo.


Ali começei minha primeira peregrinação espontânea semi-voluntária por meus novos bairros. Animado pelo tédio dominical, aproveitei o inverno carioca (enquanto o frio à sombra, cortante para bermudas e chinelos, se alternava com o calor descamisante do sol aberto) para caminhar pelas ruas que percorro diariamente, além de experimentar algumas variantes. Tentei palmilhar um pouco do centro da antiga capital de meu país, eu e meus chinelos. Diminuí consideravelmente a velocidade de cruzeiro habitual e pude voltar minha atenção pontos outros que não o chão do caminho.



Sem a turba enfurecida dos dias de semana, o centro do Rio expressa, de forma ainda mais caricata, os ciclos de riqueza e decadência que parecem permear toda a história do Brasil. Enquanto um prédio semi-abandonado da extinta 'polícia central' salta, feito fortaleza, dentre as ruas estreitas e sombreadas, diversos outros foram reduzidos apenas a fachadas, muitas vezes cobertas por chapisco. No pátio do prédio policial, dois 'caveirões', embora estáticos, se impõe ameaçadores. Fiquei imaginando o sujeito lá dentro, levando e mandando bala para todo lado. E imaginei também a galera que, com horror, o observa aproximar-se perigosamente de sua casa, quando em ação. Parado, já é uma visão sinistra!

Sem a pressa de todos os dias, consegui ver, no caminho diário, diversas outras coisas incríveis! Como um prédio sem acabamento externo, feito várias casas semelhantes de uma mesma favela empilhadas uma sobre as outras, que jaz ali começo da rua do Resende, onde geralmente passo entretido com o restinho do meu açaí. Percebi sua presença - até então ignorada - por conta de uma família que esperava no portão da frente, não menos mambembe que restante do edifício, olhando pra cima e tentando conseguir contato com quem quer que procurassem lá dentro. De fato, se não há sequer reboco, não haveria de ter interfone ou elevadores. Me surpreendi e, enquanto me afastava, observava que o prédio podia ser visto por vários ângulos. Especulei sobre onde ando com a cabeça para identificá-lo pela primeira vez em mais de dois meses por aqui.


Observei também um senhorzinho, que passa os dias sentado diante de uma loja de ferragens, um torneiro, sei lá. Sempre pensei que ele trabalhasse por ali, de alguma forma. Contudo, no domingo, com todas as lojas do entorno fechadas, ele continuava lá, dando acenos para qualquer criança que passasse e emitindo seus grunidos costumeiros. Ele usa seu vale transporte como se fosse um crachá, e suspeito de que não bata muito bem da ideia.

Por fim, foi a cena mais bizarra! Um mendigo estava jogado sobre suas tralhas, em frente a uma espécie de estacionamento. A barba vasta e dura brotava do queixo levantado, tornando a figura grotesca ainda mais absurda. E não parava por aí. Do outro lado da rua, um grupinho de mulheres e crianças caprichavam, aos gritos e risos, num escândalo afetado. Ao me aproximar, me dei conta do porquê: o velho, por baixo da calça imunda, se masturbava enquanto falava coisas incompreensíveis em direção aos céus.


No sentido oposto, um senhor corado, vestido de forma casual, de olhos claros e um sorriso muito simpático, vinha disparando para mim alguma espirituosidade sobre o inusitado da situação. Apertou minha mão no instante exato em que cruzávamos o mendigo punheteiro e parecia especialmente divertido com o caso. Não entendi bem o que ele disse e, como estava fumando, ofereci as costas da mão para o imprevisto aperto. Mas acho que, mesmo sem me pronunciar com algo mais do que um sorriso, não deixamos de entender o que estávamos pensando. E telepatia casual sempre me surpreende!


Fiquei pensando, esquisito que sou, que tenho potencial para me tornar qualquer um dos dois. Falhando tudo, adoraria ficar deitado sobre minhas tralhas, em frente a um estacionamento, num domingo de sol de inverno, batendo uma e blasfemando os céus com impropérios, além do ato. Tudo indo um pouco melhor, tenho certeza que, com o avanço da idade e o retrocesso dos pudores, faria questão de cumprimentar um jovem que compartilhasse comigo essas finas ironias do universo. Naquele encontro insólito, me senti em casa, como se as duas personalidades fossem complementares a minha, como se expressássemos com nossos portes, espíritos e atitudes as pequenas nuanças que nos fazem diferentes. Ligeiramente diferentes, diga-se de passagem.

Passei, e vi um outro grupo insólito se aproximando. Com as proporções de um paralelepípedo, um sujeito corpulento empurrava um carrinho de bebê acompanhado de um senhor mais velho e um garoto de seus doze anos... Era curioso observar o cara debruçado sobre o carrinho, que parecia querer se desfazer dada a pressão desproporcional usada para movê-lo lentamente. Fiquei olhando aquilo, interessado que estava em todo o entorno. E ele ia se aproximando do mendigo, já caçoando entre os dele... Até que disparou:

- Ô velho barreiro (era igual!), aí não... Para com isso!

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