segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Blocos

Escrever em bloco pode ser complicado. Um meu mui amigo disse que meu estilo, de espaçar parágrafos, estaria ultrapassado. Engolido pela grande rede, um método pelo qual tenho afeto, talvez até apego, de fato soçobra nas constantes renovações da escrita. Novos acordos firmando-se sem meu consentimento; dialetos festivos da classe média informatizada, de gente metade robô, metade gente mesmo, que entendo cada vez menos. Minha fluência, fugidia já nos tempos de maior estabilidade gramatico-poética, torna-se proto-poesia de um discurso sonso. Me sinto presa de meus segredos. E como mudar de assunto, se não se pode pontuar uma frase de efeito e ter o tempo de pular a linha antes de embarcar numa ideia conexa? Igual fazíamos nos cadernos, nossos cada vez mais ameaçados de extinção anti-heróis da infância e eventuais companheiros de pós-adolescência. A concretude do bloco, afinal, não dá conta de descrever a forma espasmódica do pensamento. Gosto dos travessões, dos apostos. Gosto das lacunas que eles preenchem. Mas um parágrafo te obriga a parar e pensar. Faz bem mais do que um ponto, muito mais que uma vírgula, mais talvez do que algumas reticências... Ditados e lendas prescrevem paciência: rimas raras são pequenas clarabóias entre a alma do autor e a do sujeito que lê. Pseudônimos inúteis, estamos sempre revelados pelo que escrevemos. Uma nudez inventada pelo ritmo das palavras, expressões, figuras de linguagem e acentos que escolhemos. Auto-exposição controlada, ainda que precariamente.


Só precisamos pular a linha. Ainda assim, muito de vez em quando.

(Originalmente publicado em http://prosadasemana.blogspot.com/)

sábado, 19 de novembro de 2011

Novo barato

Às três da manhã da última segunda-feira, fui tirado da cama por uma visita extremamente desagradável. Era a última madrugada de um fim-de-semana de nostalgia e esperança, dada a realização dos chás-de-fralda de dois amigos-irmãos, onde encontrei a fina flor de meu ciclo de amizades. Havia muito, não via a maioria das pessoas que ali estavam. Coincidentemente ou não, nas duas ocasiões tive a felicidade de encontrar a justa medida etílica, algo raro para alguém que, como eu, tem passado bastante tempo sem beber. E tudo isso contribuía para que eu dormisse o sono dos justos, feliz da vida novamente após considerável estiagem.


Mas não foi apenas devido ao encontro obscuro que, além de levantar da cama, desisti momentaneamente dela para começar a esboçar este relato. Afinal, acordado eu já estava desde quando percebi a presença indesejável e, por instinto, dediquei um tapa duvidoso mas certeiro ao que me roçava o pescoço e o peito. Em milésimos de segundo já estava sentado na cama perguntando – no melhor estilo maroto-travesso – “qu’é isso, qu’é isso?”

Qu’é isso!? Torci para que não fosse, mas era. Já de pé, travesseiro em punho, revi o vulto pestilento, que mirara na penumbra com os olhos da nuca, e tive a delicadeza de apenas afastá-lo com o travesseiro em que diariamente babo ou abraço para compensar as eventuais ausências da Manu.

Na hora, a reação dela foi de pânico sincero por acordar sob um sujeito de um metro e noventa munido de seu travesseiro, em pé na cama, pelado e repetindo maquinalmente uma mesma sentença. Ainda sem saber a motivação do meu desespero, ela levantou num lapso e soltou um urro de pavor, refazendo minhas perguntas mais grave e lentamente, como se sua voz estivesse em câmera lenta... Foi isso que mexeu comigo ainda enquanto ia, calma mas firmemente, buscar uma vassoura para destroçar a barata que acabara de caminhar sobre o meu peito e suas eventuais aliadas.

Fiquei balançado com aquilo, um ódio animal pelas baratas (além da atrevida, havia mais uma na porta do meu banheiro, em frente à minha cama, e mais duas na boca da casa delas, dali a alguns metros, todas alvo de minha fúria justiceira). Meus piores sentimentos, contudo, iam para a ignóbil caixa de gordura que mora no corredor ao lado. Não convivo bem com ela, nunca convivi, mas há uma anilha ancestral enterrada da porta de casa pra dentro, em frente à minha cozinha. O tampo, grotesco e medieval, até tapo com uma passadeira em razoável acerto estético. Mas o conteúdo oculto mantém-se um problema, ao menos até que me mude daqui ou uma improvável mega-operação hidráulica desvie os tubos pestilentos do meu caminho. É lá debaixo que elas vivem. Eu moro aqui em cima.

E estamos em guerra! Até então havia alguma diplomacia, as invasões eram tímidas (nada de “festa no apê” ou “caminhada sobre humanos”). Na verdade, poucas delas se apresentavam com vigor suficiente para uma boa batalha. Chegavam sempre meio grogues, sonolentas. Tampouco costumavam andar em grupos. Por isso, além da surpresa pela humilhação do break dancing no meu cangote, teve o susto pelo surto expansionista da facção rival dentre todos os insetos que convivem nesta casa (eu, em certa perspectiva, incluído). Oponente deveras complicado, dizem que nem mesmo uma hecatombe poderia exterminá-las. Questão de guerrilha apenas de ambos os lados...

Senti muita culpa pelo susto aplicado involuntariamente na Manu. Culpado por não poder, ainda, viver em um lar onde as baratas não passam tão perto da minha cama em seu caminho casa-trabalho trabalho-casa. Uma casa com menos problemas do que aquelas – boas, sem dúvida – que habitei durante a minha cada vez mais longa trajetória no planeta. Umas grandes demais, outras muito velhas, outras significativamente pequenas, e várias delas vulneráveis às investidas eventuais das malditas.

Sou ripongo incorrigível, mas não entro no barato de seres repugnantes cheios de amor para dar. Assim, possesso com a invasão e a afronta, imediatamente após ferir de morte e reunir as quatro tinhosas junto à única porta de saída, arrisquei as primeiras represálias ao desgosto simbólico de fazer-se pista de skate para baratas – acho até que a mais abusada tenha arriscado alguns passos de moonwalk nas minhas costas para conseguir me arrancar do sono profundo. Destilava, enfim, essa culpa pelo descaralho, o desapego talvez nocivo às normas, a higiene indolente e obsoleta, ou o desdém absoluto pela saúde e inteligência virtuosas que dei a sorte de contar.

Então, mesmo sem curtir inseticidas, apoderei-me do pior/melhor veneno que encontrei e fui banhar as bordas do tampo malquisto. Além de borrifar as três moribundas inimigas (uma das filhas-das-putas não me pegou as duas das seis patas que restaram e fugiu para algum lugar!?) com algum sadismo, besuntei a orla da tampa com o veneno e olhei fixamente para ela enquanto, no auge da onda do inseticida, praguejava. Permiti que meu matador serial oculto raciocinasse sobre o ódio que me transtornara. Mania nova, tenho tentado me aproveitar mesmo dos pensamentos mais malignos. E tratava-se de ódio legítimo, aquele! Plenamente útil, quiçá, em algumas situação periclitante futura.

Voltei para ver a Manu, e ela estava mais calma. Logo após seu assustador lapso de desvinculação entre a velocidade dos gestos e da fala, ela já estava sentada numa cadeira, ao lado do computador, respirando profundamente enquanto tomava cabo da situação. Pedi desculpas pela minha reação instintiva, ela compreendeu. Compreendeu também quando ralhei com ela porque reclamava em ladainha do barulho sinistro que a porta de correr do banheiro passou a fazer depois que varri uma das minhas inimigas dali debaixo para fora, para a porradaria que a esperava. Gritei que, porra, acabava de acordar com uma barata trotando nas minhas costas e, se minha porta do banheiro começou a fazer um barulho estridente, sinistro e escroto como aquele, eu tinha que resolver na hora, caralho, merda, putaqueopariu! Ela entendeu numa boa, apesar de ter criticado, posteriormente, meu requinte de ligar o aspirador de pó às três da matina.

Como pensava em dar um tratamento caprichado à questão, trocando lençóis e fronhas, tomando mais um banho e começando a vedar com cola plástica (comprei um litro com este intuito há tempos) a fresta entre minha casa e o esgoto, sugeri que a Manu fosse deitar na cama da Lis. Mas, quando eu abri o quarto da pequena, vi o quanto a cama dela estava zoneada. Quase tudo culpa minha! Aí, quase esmoreci. Mas transferi a bagunça para outro canto, oferecendo finalmente um pouso para a namorada sonolenta.

Tudo pronto, resgatei a moça. Mas dormi pessimamente. Acordava a cada rasante de mosquito e mesmo quando um simples pelo de minhas pernas se desenrolava sob o cobertor. Espasmos ordinários e uma suposta taquicardia confirmavam a intoxicação com o veneno, que provavelmente me fulminaria em alguns instantes (afinal, achei o gosto de um dos cigarros que fiz enquanto escrevia estranho, por rascante, e cheirei minha mão com paranóia, supondo encontrar vestígios do produto, que eu teria lambido acidentalmente). No fim, cochilei um pouco. E sobrevivi.

Acordei bem, mas sinto seqüelas. Afinal, sempre tive uma relação poética com as baratas, que me induzem à prosa com alguma regularidade. Mas preciso tomar medidas urgentes visando impedir que o acaso me venha despertar novamente esfregando suas pequenas patas, provavelmente sujas de merda, na cara. As baratas à espreita. Estarei aqui, de tocaia. Pois não existe refúgio para uma guerra civil – a solução é doméstica e, talvez, lenta. Tento me contentar em ser um sujeito tranqüilo. Pelo menos, sangue de barata eu sei que não tenho. Já é alguma coisa.

(Originalmente publicado em http://prosadasemana.blogspot.com/)

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Torto timbre

Domingo de sol escaldante no Rio. Fui, mais minha senhora, almoçar no famigerado Bar do Peixe que, por sorte minha, fica pertinho de casa. As instalações precárias são plenamente compensadas pelo atendimento impecável e pela delícia da comida. Comida simples, mas farta, e cerveja gelada, caso se imponha a necessidade de "ficar pensando melhor". Dispensamos a cerveja, ainda traumatizados com a ressaca que consumiu nosso sábado, e fizemos o mesmo pedido de sempre: meia porção de Namorado, arroz, pirão e batatas fritas.

Desistimos do café da manhã tardio e fomos direto para lá. Assim, fato até então inédito, chegamos cedo e conseguimos pegar uma das mesas que ficam mais próximas ao bar, completamente na sombra e sobre um rebaixo no meio fio que dá a nítida impressão de que o chão embaixo de nós é plano - verdadeiro luxo para os padrões do bar. Ademais, com poucos pedidos na nossa frente, sabíamos que mataríamos, mais rápido do que de costume, o que vinha nos matando.

Eu e a moça, que andamos conseguindo discutir pelos mais escalafobéticos motivos, estávamos num fim de semana especialmente apaixonado. Cúmplices na frustração cinéfila da noite anterior, nos exageros da festa de sexta-feira e mesmo na já citada ressaca subsequente, avançamos mais alguns passos na dificultosa conversão de amor sincero em felicidade conjugal.

De fato, tivemos pouco tempo para folhear as revistas que levamos. As previsões mais otimistas se concretizaram e, em poucos minutos, o Namorado já estava sendo devorado pelos namorados. Conversávamos algumas amenidades enquanto resgatávamos as espinhas mais inconvenientes. Fome e vontade de comer acariciavam-se docemente...

Até que um taxi parou atrás de mim para que uma turba de velhinhas desembarcasse. Como a rua é estreita, o trânsito foi momentaneamente interrompido. Era domingo, dia de descanso e calmaria, mas o filho da puta do motorista do carro que parou praticamente ao meu lado tascou a mão na buzina e esqueceu ela por lá... Deu tempo pra eu ter a reação, ponderar os riscos, levantar e caminhar um par de pares de passos em direção ao carro sob os protestos de minha companheira, que preferia que eu deixasse aquilo pra lá. O desgraçado continuava buzinando quando dei uns tapas no teto do carro e gesticulei que estávamos almoçando ali ao lado. De dentro do vidro fumê, ar condicionado ligado, o cara praguejou alguma coisa que não deu para entender, mas largou a buzina e esperou o restante do meio minuto que ficou parado em silêncio.

Voltei triunfante para a mesa, algumas das demais pessoas que estavam no bar também gritaram uns desaforos preguiçosos para o cara e a aprovação pelo meu ato era algo quase material... Sentei com a cara fechada, mais por maneirismo que por raiva, e voltei a me concentrar no meu almoço. Me sentia bem, e o apetite ficara intacto! Maior, talvez.

Então veio o maldito vascaíno! Dentro do seu jipe, janela aberta, a ausência de cinto de segurança parcialmente compensada pela faixa preta enviesada na camisa branca... Ele assistira toda a cena e, olhando nos meus olhos, deu duas longas e estridentes buzinadas. Tomado de ira, cuspi comida enquanto gagejava meus melhores impropérios, sem muito sucesso. Tremi de ódio quando ele arrancou, não sem antes (fingir?) cumprimentar alguém dentro do bar com mais alguns toques curtos. O apetite, seriamente comprometido, agonizava.

Que fique claro: sou entusiasta do futebol carioca, e prezo muito menos as rivalidades locais do que uma improvável hegemonia do Rio de Janeiro no futebol nacional. Embalado pela paixão do irmão tricolor, por exemplo, cheguei a ficar triste com a derrota do Flu na final da libertadores e, durante o jogo, embora sem saber torcer dado o arrebatamento rubro-negro, consegui até ficar apreensivo com o andamento da partida. Em solidariedade ao outro irmão, botafoguense, permaneço perplexo por conta das coisas que só acontecem com o Fogão... Mas o Vasco é diferente. O Vasco é escroto. Tenho ótimos amigos vascaínos, e alguns são até inteligentes. Mas é incrivelmente difícil de discutir futebol com eles. Parece que todo vascaíno é mais babaca - ao menos futebolisticamente falando - do que os flamenguistas mais babacas (a diversidade é implacável e alguns co-irmãos rubro-negros, de fato, chafurdam na mesquinharia cotidiana). Compartilham uma falta de senso crítico e humildade que, se nos amigos a gente tolera, desprezamos sem dificuldade nos desconhecidos! Coitados... O gigantismo da colina não se concretiza, e eles vivem vidas inteiras sob a sombra do vizinho super-poderoso. É compreensível quando resmungam baixinho, até por saberem que chororô histérico jamais é perdoado!

Por conta do motorista vascaíno, vibrei com os dois gols que o time levou do Olaria naquela mesma tarde... Não sou de fazer isso. Entendo que torçam tanto contra o meu time por inveja de sua potência e pelo tamanho de nossa torcida. Mas, como não vejo motivos para invejar qualquer outra equipe, me recuso a vibrar com gol alheio. Naquela tarde gritei "Mengo!" para o puto que comprometeu o meu almoço e espero sinceramente que ele tenha escutado o meu ou outros gritos semelhantes. Afinal, o Flamengo é infinito, e algum compadre, certamente, vingou os pedaços do nosso peixe frito que acabaram abandonados!

De toda forma, o que importa na parábola é perceber o quanto vivemos numa sociedade doentia. Por que diabos alguém se esmera tanto em reclamar ruidosamente de um atraso de 30 segundos em sua jornada? Em pleno domingo! E pior: qual o critério que determina que aquele vascaíno filho de uma quenga (e nada contra as putas, por favor!) possa circular num jipe daqueles e eu não tenha grana suficiente pra comprar meu fusca? Por fim, será que valeu mesmo a pena eu reclamar do barulho? Afinal, meu apetite é infinitamene mais importante do que aqueles apressadinhos de merda e suas mesquinharias!

Dúvidas persistentes. Conclusões fugidias...

Palavrório

Escrever é complicado. Penso nisso toda vez que leio alguém mais literato, e isso acontece com alguma frequência. Na imprensa convencional, careta, é até raro, mas não falta bloguinho que nego humilha na malemolência, na erudição, nas citações psicanalíticas ou filosóficas ou em tiradas realmente hilariantes.

Tenho uma queda por citações certeiras. E tem gente que cita até Deleuze! Aí eu piro, acho tudo aquilo lindo. Nas minhas erráticas leituras dos clássicos ou chatos das ciências sociais, aprendi o suficiente pra saber que entendo pouco, um nadinha. Dele, Deleuze, e do Nietszche, por exemplo. Esse então, enquanto eu assino Braz - um zêzinho só, humilde - o cara tem zê e esse, juntos. Na verdade, a reunião de tantas consoantes, por si só, já é um desafio. A complicação começa pela grafia do nome. É incrível, um supra-sumo do desafio literário.

Mas para escrever "bem", tem aquela estória do vocabulário. Sempre me impressiono com palavras difíceis bem colocadas. Acho isso um barato. Mas, fico pensando: se eu que já sou um pouco bom nisso, às vezes tenho dificuldade para apreender a profundidade de um bom vocabulário usado de forma articulada, e o resto do planeta? Olha que eu até arrisco uns exotimos imprecisos quando escrevo ou falo. E quem passa longe de entender ao menos precariamente o sentido de palavras como obliteração, devir, tergivesação, meridional, exegese... Como é que faz?

Cadafalso, calabouço... A justa medida é uma prisão. Para arriscar um texto, há de se saber por quês, de perceber os limites de um leitor específico, de reverter poréns, de elucidar qualquer detalhe óbvio, mas até então despercebido. É a magia do negócio: ser compreendido, ainda que fugazmente. Quiçá até emocionar com isso.

Escrever é sacrifício, catarse, problema, ofício. Algo que me imponho sem muita convicção ou constância, por acreditar ter mais palavras do que assunto. Mas gosto delas como gosto de música: suas sonoridades, seus timbres, os conceitos que condensam, sua diversidade absoluta. Palavra, para mim, é como tantos outros vícios... Mas o punhado de gente que me lê - tudo bem, tá certo - não tem nada a ver com isso!

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Eu tô aqui em Lima, eu tô do lado...

Sempre me pareceu completamente absurdo precisar chegar com duas horas de antecedência ao aeroporto nos poucos vôos internacionais que tive o prazer de frequentar. Mas, depois que consegui perder um destes na volta de uma viagem, e morrer numa grana que eu já não tinha para remarcar o vôo, para hospedar-me durante a inesperada 'noite extra' e até mesmo para comer alguma coisa, resolvi ser um pouco mais compreensivo com essa margem de segurança. Afinal, tenho o hábito de chegar atrasado, mas sou extremamente pão-duro.


Nesta última viagem, estava acompanhado de meu amigo Bruno, o monstro. Eu, que sempre preferi viajar sozinho podia, depois de muitos anos, fazer comentários in loco e ao vivo sobre os acontecimentos da viagem, além de aproveitar o descaralhamento e a desinibição prática do meu grande compadre para, quem sabe, conhecer mais gente do que de costume.

No tédio da espera pelo embarque, o papo:

- Brunão, aquele ali não é o Muhlenberg?
- É sim, cara...
- Então aproveita o teu escracho constitutivo, e vai lá falar com ele, ora!

Mas o monstro refugou, e não soube expressar a grande admiração que a gente sente pelo cara. Ao menos em palavras. Não naquele momento. E tá certo que tietagem não é nosso forte, mas a gente desdenhou demais da conspiração a favor. Afinal, o cara é totalmente flamengo, xará do galinho, e samba na lama de sapato branco com seu 'humilde bloguinho' sobre o fuderosão das galáxias, esbanjador de pós-potência na prática desportiva e galudo-máximo do futebol brasileiro, único hexacapeão de futebol masculino do país, o urubu-rei da porra toda: o meu, o seu, o nosso e de quase todo mundo, Mengão...

Ademais, todos estes prós na conta do Arthurzão não eram páreo para a pedra filosofal contida na feia de shape, mas cheia de ideias, cabeça do sujeito. Muito mais importante do que tudo isso, ele era nossa única chance de descobrir onde poderíamos assistir, lá em Lima, à semifinal da Taça Guanabara contra el Foguito, que seria dali a alguns dias.

Mas, mesmo com tanto motivo para abordar o cara, antes do embarque ficamos só moscando. Entrando no avião, quando passamos por ele, já acomodado em sua poltrona-patronagem-master, engolimos a saudação. O cara já havia encaixado os fones de ouvido mequetrefes que as aeromoças oferecem e praticava uma espécie de alheamento boladão. Por fim, todo mundo ali estava no aeroporto desde as três da matina e, até por isso, levantar durante o trajeto e arriscar arrancar o malandro do cochilo seria patético. Então, fomos ficando...

No fim do vôo restava pouco a fazer. O cara estava grudado na porta, levando só uma mala de mão. Até a gente sair, lá da rabeira, ele já teria ido embora, com certeza. Chegamos para pegar as malas sem esperanças e, considerando fracassada a missão 'falar com o Muhlenberg', vaguei em busca de nossos primeiros trocados em moeda local, simpaticamente chamado de "Sol". Para minha surpresa, recém amanhecia na minha carteira, acenderam a luz de um guichê, logo ao lado. Tava ali o Muhlenberg. Veio o funcionário, só pra ele. Pensei: esse cara é play!

Corri pra convocar o monstro e, zerando a palhaçadinha, abordamos o cara. Depois da primeira troca de delicadezas protocolares, o Bruno - que é o cara bronco - acabou sobressaindo como o mais simpático do trio. Foi ele quem conseguiu conciliar a minha afobação agressiva com a agressividade afobada do Mulão. Afinal, o cara só estava ali, falando com a gente no guichê supostamente exclusivo porque, já na saída, implicaram com o segundo laptop dele. Porra, o cara é patrão, mas nem tanto - pensei... Anotamos o número do quarto e o hotel em que ele estava e ficamos de ligar.

Dia do jogo, ligamos e confirmamos hora e local: Media Naranja era o nome do bar brasileiro, servido por garçons peruanos e com uma decoração duvidosa que parecia querer contemplar, de uma só vez, toda a nossa diversidade e nosso imenso potencial farofeiro. O Arthur já estava lá quando chegamos. Na verdade, era o único ser humano no bar e, sentado incrivelmente torto na cadeira de plástico, observava a programação aleatória da televisão em êxtase barroco.

Acompanhados da amiga peruana, fechamos uma mesa com ele. Depois da primeira rodada de cerveja, já éramos grandes amigos - um pequeno enclave da Nação em terra estrangeira. Mas (coisa linda) nossa torcida transborda não só as fronteiras do estado, mas os limites do país. Somos muitos! Assim, logo o bar estava completamente tomado por rubro-negros frenéticos e ruidosos. Mantendo as proporções da sede, éramos uns 30 flamenguistas contra a torcedora alvinegra solitária. Ela, coitada, meio encabulada pela infelicidade de escolher o time errado para torcer, assistia à nossa festa tentando esconder a comoção.

De fato, foi uma festa linda! Tudo começou mesmo quando um camarada do Arthur, que tá morando por lá, gente boa toda vida, chegou com o bebê no colo, mas entrando de sola: "Flamengo eu tô aqui em Lima, eu tô do lado!" Nativo do Méier, o malandro não perdia a oportunidade de lembrar "conhecer de vista" as diversas conterrâneas dele que floriram nosso bar para gritar pelo Mengão. Niterói, cidade onde eu e o monstro nascemos, também representou bonito com um trio de generosas retaguardas balançantes. Se perguntássemos aos passantes qual é a torcida mais bonita, tenho certeza de que todos responderiam, mesmo conhecendo somente aquela diminuta fração da Nação, que era a nossa. E eles estariam certos!

Durante o jogo, o primeiro tempo - todo nosso! - atiçou a filial limenha da maior torcida do Brasil, e chegamos a virar atração turística. Locais e gringos se emparelhavam na admiração pela pequena demonstração de rubro-negrismo internacional, alguns filmavam - imagens históricas! No segundo tempo, o Arthur - desavisado - deu mole, e quebrou a corrente na urgência de descartar o excesso de água que toda cerveja traz. Acabamos tomando um gol. Mas nem assim esmorecemos. As bolas adversárias passavam perto, sem abalar nossa convicção de levantar mais uma vez aquele caneco. Ademais, empatar com o botafogo em decisões, ultimamente, é até previsível. O detalhe é que a gente empata, mas leva... A ele, resta chorar...
Quando terminou o jogo, por mais que a gente já soubesse que o 'mais querido' nos daria esta alegria, comemoramos muito mais essa conquista. A amiga botafoguense prometeu rever o equívoco primordial, e acenou positivamente com a possibilidade de converter-se e fechar com o certo. Depois de tudo, povo rubro-negro em Lima dispersado, ainda demos mais umas voltas com o Mulão, que se mostrou um cara essencialmente gente fina, especialmente nos dias que o flamengo conquista alguma coisa. Ainda que se trate do primeiro turno de um campeonato que ganhamos quase todo ano.

A impressão que fica é que cara é como o Flamengo. Amado ou odiado por milhões, meio mambembe, completamente fanfarrão-with-lasers e abençoado por uma humildade completamente desproporcional às suas conquistas. Porra, Muhlenberg, prazer inenarrável conhecê-lo... A gente se encontra em Tóquio, ainda antes de acabar o mundo, para mais uma conquista do Mengão!

terça-feira, 28 de setembro de 2010

A dor não vira as costas.

Dentre a infinidade de programações absurdas para uma sexta-feira, apelei. Fui na casa da ex buscar um televisor, regalado após a troca por um mais novo, mais leve e mais fino. Consultei meus músculos e eles, apesar do passado recente de inércia quase absoluta, confirmaram a disposição de enfrentar o desafio.



Como se não bastasse o peso do aparelho (certamente mais de um quilo por cada uma das 29 polegadas), o trajeto era terrível: do alto do terceiro andar do prédio dela para o carro, e do carro para o alto de meu primeiro andar alto. Outros fatores agregaram-se à empreitada: a estreiteza das passagens, a absoluta falta de elevadores e, nos últimos instantes de suplício, o fio ‘sem mãe’ que ficou dependurado e insistia em pousar justo sob o meu próximo passo.

Contrariando todas as normas de boa conduta ortopédica, depois de todo o esforço, me curvei abraçado ao monstro, e o pousei no chão com as pernas esticadas. Já não conseguia pensar em outra alternativa, e o fiz até com alguma desenvoltura. Assim, terminado o trabalho, ainda estava bem, embora suado e ofegante.

Despedi da ex e, antes de montar minha nova sala de exibições, deitei por alguns instantes sobre o colchão inflável que faz as vezes de cama de minha filha e, como sempre, estava um pouco vazio. Minha namorada, talvez impressionada por meu ato heróico, resolveu se jogar sobre mim. Fiquei bastante torto, mas estava exausto e aceitei a condição. Então, sem demorar muito, movido pelo desconforto, clamei por liberdade. Em seguida, mega-poderoso, levantei com um salto... Pronto!

Descaderei feio. Numa só puxada, uma dor lancinante avançou pelo lado direito da minha região lombar, e ali se instalou confortavelmente. Parecia não querer me deixar. Um fato raro para minha atual situação burocrata, especialmente pelo fato de que, até no futebol, estou sentado no Banco. Em suma, como estou praticamente aposentado dos esportes, fazia muito tempo que eu não tinha meus movimentos limitados sequer por uma unha detonada, um tostão bem dado, ou um tornozelo meio torcido. Ademais, realmente doente praticamente nunca fico.

No fundo, contudo, foi muito esclarecedora para mim a sensação de limitação que experimentei aqueles dias. Na rua, o vagaroso era eu. O alvo da chacota dos amigos pela lentidão incrível para sentar ou levantar de uma simples cadeira era eu. Era eu quem fazia as caras mais grotescas para avançar uns poucos passos.

Agüentei com maturidade a zombaria dos amigos, que me acusavam de ter abusado de usos outros (aos que estou acostumado) para a minha retaguarda. Entrava na galhofa alegando que fora a perda daquela virgindade que me rendera tamanho desconforto. Levantava ou sentava mais de uma vez a pedido dos amigos mais masoquistas, que se divertiam com minha lentidão e com as caretas.

Já no foro íntimo, o panorama tampouco foi consolador. Surpreendentemente, consegui comparecer no ato do amor, embora com algumas limitações que, no calor da hora, até eram excedidas. Mas não posso dizer o mesmo para o simples ato de me virar na cama, a aventura de calçar um sapato, o esforço absurdo para vestir a calça, a incapacidade completa de pegar qualquer peso.

Inicialmente, ombros e bíceps também ficaram bastante castigados. Sentia a tradução simultânea de meu recente sedentarismo no ácido lácteo que se acumulou nestes músculos. Me sentia um fraco, em todas as acepções possíveis do termo. Mas, como se a sabedoria tivesse acompanhado este breve insight sobre o provavelmente doloroso processo de envelhecimento, consegui ficar mais calmo e paciente e entender – com a série de choques nas cadeiras – que precisava ir mais devagar, ou me preparar melhor para os meus desafios.

Não fiz nada disso, até o momento. E a arrogância da ‘juventude’ voltou, tinhosa!

O poder da mente

Sou um pouco supersticioso. Não entendo bem por que, mas evito passar embaixo de escadas, bato 3 vezes na madeira quando necessário (e possível, pois o mundo é cada vez mais feito de plástico), entro e saio com o pé direito de diversos lugares, faço pequenas apostas comigo, e tento desviar do caminho de gatos pretos.
Não é sempre, mas com os gatos, por exemplo, tento refazer meu trajeto para não cruzar com a linha imaginária sobre a qual acabaram de passar, ou fico tentando mantê-los num canto, para que eu passe ao lado, ao largo de seus caminhos. Nesse dia não foi possível. O bicho saiu de surpresa de baixo de um carro, atravessou rapidamente a calçada, bem a minha frente, e entrou numa oficina.

Fiquei em situação complicada. Não conseguiria simplesmente fugir do seu rastro porque os carros estacionados estavam praticamente grudados uns nos outros, e precisaria voltar um bom pedaço para poder ganhar a rua e vir caminhando por ela. Por outro lado, me pareceu especialmente ridícula a possibilidade de entrar na oficina para contornar o gato. Ademais, tinha alguma pressa, como de costume.

Sem alternativas, rompi a fronteira imaginária com galhardia, mas, como sequer lembrava com qual pé entrara no universo que há após o traço invisível desenhado pela passagem de um gato preto (pretíssimo... nem uma manchinha!), decidi colocar em movimento o mecanismo de autonegação que – ao menos para a superfície de minha racionalidade – trouxe algum alento. Com a repetição exaustiva do pensamento “que bobagem, isso não é nada, não significa nada, não tem nada a ver...”, comecei a tentar me enganar.

Mas a impressão da situação continuava gravada em mim, e a precisão do gato ao me confrontar em momento tão indefeso era particularmente intrigante. Dali pra diante, não tive mais sossego. Alguns passos à frente, um par de senhoras caminhava de braços dados numa velocidade desconcertantemente lenta. A calçada, não tão estreita, permitia uma ultrapassagem certeira pela canhota. Mas – espanto! – tive que refrear o instinto de utilizar o nitro, e disparar no turbo, ao notar a presença de uma escada marota, apoiada sobre a marquise subseqüente. Preferindo não acumular os azares, esperei as senhoras passarem pela escada para fazê-las comer minha poeira.

O caminho para o trabalho é curto e eu já estava no final quando tudo isso aconteceu. Sinceramente, depois de tanto tempo vindo de Niterói para o centro do Rio acompanhando a crescente precarização do serviço oferecido pelas Barcas S.A., não pensava em conseguir tamanha “aventura” nos meus 15 minutos diários de caminhada. Mas as pessoas paravam subitamente a minha frente, me fechavam sem o menor aviso, carros avançavam para cima de mim, vinha uma bicicleta na contra-mão quando eu estava olhando para o outro lado. Eu já estava achando tudo engraçado, mas continuava repetindo que “não era nada...” por precaução.

Até que vi os sujeitos da prefeitura. Enquanto um escorava uma rede de proteção, o outro passava o cortador de grama num desnível do caminho. Eu vinha caminhando pelo lado oposto da rede, que protegia aos passantes do outro lado do canteiro. Tive certeza, na hora que os vi, ainda de longe: vai voar alguma coisa em mim, era só o que faltava!

E não é que, quando eu passei pelos caras, uma pedrinha acertou o meu joelho!? Ri no mesmo instante, de alívio. Mas depois, me deixei devanear um pouco sobre o ocorrido. A pedra poderia tomar qualquer direção depois de chicoteada pelo fio de nylon que esses cortadores de grama usam; qualquer minúscula diferença no meu trajeto seria suficiente para me desviar da mesma pedra – se não tivesse esperado para passar pelo par de senhoras, por exemplo; os caras poderia tentar 3 bilhões de vezes, com as mesmas condições, e jamais lograriam me acertar novamente a pedra etc. Em suma, o movimento da pedra até o meu joelho foi muito preciso e, pra mim, das duas uma: ou eu atraí a pedra até mim, ou previ que a pedra me acertaria.
E importa pouco qual das duas está certa. Afinal, nenhuma das duas pode ser explicada sem um leve constrangimento metafísico.

No caso, encontrei a explicação que mais me apeteceu: fiquei tão impressionado por uma convicção que transcende minha racionalidade que acabei fazendo uma ‘mágica’, um ‘milagre’ com a força do meu pensamento. Infelizmente, para o mal. Não que a pedra me tenha machucado, nem que se tenha concretizado minha previsão seguinte: de que meu joelho estaria prestes a estourar e a pedra seria, disto, um aviso. De fato, quando me dei conta que afundava em especulações sobre rompimento de ligamentos cruzados, dei um basta, e parei com a baboseira. Parei de me condicionar a lesionar o meu joelho que, obediente, já doía um pouco.

Mas fiquei marcado pela possibilidade de projetar coisas. O grande passo, contudo, está em acreditar nos meus sonhos como, involuntariamente, creio nas minhas superstições. Tê-los como amálgama disforme e indescritível e deixar que me guiem através da vida. Pressinto que saberei fazê-lo, um dia.