sexta-feira, 16 de abril de 2010

Desígnio

Discorria sobre os acontecimentos da noite anterior enquanto o cigarro, deposto no cinzeiro quase morto, terminava de esvair-se. Arfava desconexa, aferrada que estava com a vividez da lembrança. Cenas, cheiros, sabores, dores e ruídos praticamente reais lhe perpassavam o corpo. Ela eriçava, encolhida ao meu lado. Mentia o mínimo possível e muitas palavras escapavam por pouco do trincar dos dentes. Rosto desfeito, lágrimas secas inundando cada sulco, contava baixo. Explicações precisas, frases feitas para um desgosto recente. Escutei, calado para além dos suspiros. E disparei o que pude do que concluí. O raro efeito sentido, consolo somente, deixou-a respirar. E o abraço apertado cedeu por um instante, enquanto o corpo se enchia de alento. Um belo momento, dos que não alcançam filmes ou fotografias, mais feito de sentimento do que coisa dita. Um silêncio cego, furioso em seu apego à situação inteira. Se a ele se seguisse um grito, não seria estranho. Mas, ali, manteve-se firme, calando tudo, menos o pensamento do par. Cada qual com sua linha, voava longe, num divagar impreciso. Ela e a lembrança, ele e o consolo, o abraço e o suspiro... Cacos de um mito particular, refazendo-se. Contas de vidro. Conto onírico. Delírio mútuo. Desígnio.

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