quarta-feira, 14 de abril de 2010

Dengos

Devido à multidão de mosquitos inocentes (apesar de seus hábitos alimentares doentios) que nos cerca, resolveram lançar ao ar venenos que os matasse. A expansão do surto epidêmico, normalmente confinada às zonas periféricas – ou centrais, mas mais humildes –, acabou alcançando as áreas mais nobres. A bem da verdade, estava, tranqüila, sobre a cidade inteira, a epidemia. Ainda sem culpa maior do que ter aproveitado as condições favoráveis para se reproduzir de forma otimizada, resolveram, os mosquitos, dividir o mundo conosco. Afinal, vida de mosquito, além de dura, é curta! E eles devem ter algum entusiasmo pelo sexo também.

Voltemos ao veneno. Daquele que lançaram pelos ares e que, enquanto os seres humanos – e muitas outras formas amigas – passam ilesos, lesa seriamente o mosquito. Na verdade, lesa seriamente sua família inteira.

Não temos culpa de serem tão pequenos os mosquitos... Caso pudéssemos, e tivéssemos as ferramentas para isso, castraríamos, faríamos modificações genéticas para dar-lhes civilidade à mesa, e fazer de suas picadas uma delícia também para nós. Mas não podemos, e castramos matando mesmo.

O que passa é que as borboletas, que têm tanto de mosquito quanto de gente, também não gostaram do veneno. Apesar de espécie amiga, afim aos usos lúdicos dos olhos humanos e, portanto, por eles razoavelmente respeitados, padecido seu lado mosquito, já não podiam ser. E também morriam. Os humanos não chegaram a ficar tristes. Cada qual culpou quem pôde pelo fato de a epidemia ter derrubado tanta gente importante, e matado alguns anônimos (das partes periféricas, ou tristes). Todos querem o fim da farra do mosquito. Debatem sobre isso na televisão... Querem que ele volte para o Egito, de onde não deveria ter saído. Isso se o fato de aqui haver destes do Egito não nos faça ignorar a existência, também nefasta para nós, dos nativos mosquitos. E também, claro, do fato de que o que aqui temos veio junto com os homens que trouxeram da áfrica, seus braços, filhos e mosquitos, dentre muitos outros aparatos.

Retomemos as borboletas. Elas também sumiram. Mas sabemos que, assim como o mosquito, algumas delas sobraram para contar estórias e seduzir seus parceiros para, num lapso de glória, reformar o ciclo e dar-lhe novo andamento. E o provável é que, voltando os mosquitos, voltarão as borboletas, mesmo que seja numa próxima (ou distante) estação.

Eu me vanglorio por ter estado com uma borboleta por algum tempo. Talvez a tenha salvado do extermínio. Talvez estivesse gestando dos seus, ou preparando-se para isso. Talvez eu os tenha salvado todos. Preciso confessar que a borboleta ficou grudada numa mancha de cerveja seca que havia no chão de minha sala, fruto de uma festa humana. Achei que estivesse, como as do veneno, morta. Perguntei, me respondeu que não, que estava bem. Na verdade, o cheiro de cerveja na sala seria suficiente para embriagar uma criança e acredito que a borboleta tenha passado por bons e maus bocados, sinceramente bêbada.

Depois de um tempo, ela ficou presa entre os dois vidros da janela de correr. Ignoro como tenha chegado até ali, mas parecia bem, hiperexposta em uma vitrine. Consegui, por fim, manobrar para libertá-la e, para minha surpresa, após quase uma semana de latência, ela voou...

Eis que hoje, algumas semanas depois, uma outra borboleta me invade a casa. Num quarto mais alto, uma janela maior, soberana sobre os vidros superpostos. Livre. Um pouco menor, cores mais brandas. Variações de ocre, amarelo, marrom e uma vermelhidão puxada para os precedentes tons. Esta parecia um mapa mundi, daqueles antigos, que os homens que aqui chegaram com seus mosquitos e sua forma peculiar de fazer as coisas – e, em suma, levar a vida – costumavam desenhar naquele tempo.

Essa ficou comigo, mas por menos tempo. E foi bom assim também.

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