Os tempos de atendente de caixa econômica me ensinaram a ter uma paciência inabalável quando estou esperando para ser atendido. Depois de receber das filas doses maciças de magia negra, mandingas, vudu, olhares furiosos e mesmo reclamações formais por abandonar o posto por alguns segundos para buscar uma impressão, sem a qual não poderia terminar o atendimento em curso, tento não devolver o que recebi na época quando sou eu o cliente. Muitas vezes, subi para mastigar minha comida fria, já depois das três da tarde, e - tenho certeza! - alguém perguntou (ao menos internamente) aonde estava indo aquele filho da puta. Assim, por mais que filas e lentidões continuem me irritando, como irritam virtualmente todo mundo, tento não passar minhas energias negativas para o mártir do capitalismo que está do outro lado do balcão.
Por isso, quando entrei na sala dedicada a torcida organizada do Flamengo, que fica num predinho simpático no centro do Rio, para comprar o meu ingresso para o próximo jogo, não me importei em aguardar numa suposta fila, atrás de dois sujeitos que estavam por ali quando cheguei. De dentro do balcão, contudo, um dos três que lá estavam me perguntou o que eu queria, ao que confessei o interesse nos ingressos. Dois.
A partir daí, atuou a psicodelia! O negão forte que estava a minha frente na suposta fila (era camarada dos atendentes, e estava ali de lero-lero, ou mesmo trabalhando), disparou:
- Mas não vai comprar ingresso aqui com esses brinquinhos!
Sereno, vasculhava a carteira para pegar o dinheiro necessário e levantei os olhos, incrédulo:
- Tá de sacanagem?
Pra quê!? O negão, enfurecido, deu um murro no balcão e perguntava, sem muita fluência no português, que porra era aquela, como podia, se eu estava maluco, se eu tinha perdido a noção... Ciente de que estava na sede de uma torcida organizada, e do que seus membros costumam fazer por diversão, tratei de acalmar as coisas. Continuava sereno, até porque os outros quatro caras que estavam lá pareciam mais amistosos e mesmo acostumados aos arroubos do nosso amigo furioso, que deve ser um soldado raso, no máximo. Ademais, todos pediam que ele se acalmasse, dizendo que, para algumas coisas, bastava conversar. E ele se afastou um pouco, ao ponto de eu conseguir me sentir seguro para pedir esclarecimentos.
Então li, incrédulo, o cartaz que dizia que era proibida a entrada de pessoas vestidas com camisas de outras equipes (ok, é justo) ou usando brincos! Só isso! Aparentemente, cuecas na cabeça, melancias no pescoço e mesmo uma drag queen inteira, 'montadíssima', desde que sem brincos ou uniformes da torcida arco-íris, poderiam entrar com naturalidade no reduto da organizada.
Não sem antes perguntar, mais uma vez, se eu precisava mesmo tirar os brincos para trocar meu dinheiro pelos ingressos (afinal, me parecia nitidamente que alguns dos atendentes não eram tão rígidos com a regra, e eu já estava lá dentro havia alguns minutos, com os brincos), ouvi, ainda mais incrédulo, a explicação do sujeito tatuado de dentro do balcão. Eles eram soldados do flamengo e, munidos deste estatuto, importavam algumas regras do exército brasileiro. Ahhhhhh... Tá...
De fato, isso explicava outro evento insólito, acontecido um pouco mais cedo: liguei pra lá, para perguntar sobre a disponibilidade dos ingressos e a eventualidade de filas. Acho que fui atendido pelo tal soldado:
- Quem é!?
- Como assim? Meu nome é Marcos, mas acho que você não me conhece...
- De que pelotão, compadre!?
- Pelotão!? Pelotão nenhum, mestre... (podia ter dito que era só um mercenário, mas só me ocorreu agora!)
- Então é 'setentaconto'...
- Ok, obrig...
De volta à sala... Enquanto o tatuado me explicava as regras, um outro cara, que estava do lado de fora com o nosso soldado quando cheguei, me ajudava a pegar a bolinha (quicava incrivelmente, a puta!) do piercing que me faz as vezes de brinco solitário na destra. Já havia sacado o par de argolas da canhota e, com sinceridade, pedia desculpa pelo mal entendido, por desconhecer e ter transgredido as regras. Eles, aparentemente acharam tranquilo. O soltado, não.
Então, despido de meus aretes, pude colocar minhas mãos sobre os sonhados ingressos! "Vamo Flamengo, porra!", exclamei entusiasmado, ao que os amigos aprovaram, exultantes. O soldado, não.
No fim, não cheguei ao ponto de compreender a hierarquia a fundo, mas o branquelo tatuado me pareceu um sargento, e os outros três, ao menos cabos, ou mesmo tenentes desta instituição insólita. E não só porque conversavam com desenvoltura sobre o que eu comentava (que jogadores usam brinco, a não convocação do Adriano para copa e o adversário do Fla no dia seguinte), mas sim pela força da voz de comando sobre o cão de guarda que, se não se mostrou simpático em nenhum momento, conseguiu nutrir por mim uma indiferença reconfortante. Para a minha integridade física, pelo menos...
Hoje, vou ao Maracanã e, até por via das dúvidas, vou para o meio da facção adversária, como de costume.
Muito bom! Quer dizer, o texto. A situação deve ter sido um pouco tensa, imagino, hehehe...
ResponderExcluirHahahaha que tenso!!!! Essa história está a sua cara!!!! Hilário! Parabéns, Breeze...
ResponderExcluirHahaha
ResponderExcluirMuito boa a desrição dos fatos! Consigo imaginar a cena...
Na mais perfeita orientação militar, brincos proibidos. Mas e as tatuagens, longos cabelos... ?
Abs
Caguei de rir!
ResponderExcluirNada melhor do que uma cagada anônima! Ali, numa das esquinas da UERJ (antes de descobrir o atalho por dentro da mesma), passava diariamente por uma variedade incrível! Era uma merda!
ResponderExcluirAgora sério: identificai-vos, anônimos...
Surreal... Muito bom o texto. A gente sente todo o climão. Meu filho, você nasceu de novo!
ResponderExcluirMamute (?), não conhecia esse seu log público, pensei que suas lucubrações escritas se limitassem aos testamentos-convite enviados por e-mail.
ResponderExcluirConheço essa história futebolística narrada no gogó do próprio brincalhão, fato este não suficiente para minorar o desconforto maxilar de tanto rir. Mas não me caguei.
De fato, melhor amigos 'cagões' do que camaradas cagados!
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