Foi uma dessas doideiras que a gente faz pra entender que, numa próxima vez, melhor seria pensar melhor.
Eu estava sem tirar férias há um ano e pouco e já dava os primeiros sinais de estafa. Estava ficando meio maluco. Afinal, aqui no banco temos diversas regalias, benefícios, mas, especialmente quem atravessa seu primeiro ano de serviço, não tem direito a enforcar um feriado sequer. Perdi algumas boas oportunidades com a namorada e os amigos. Em suma, não viajava desde que voltara do México direto para assinar o contrato de trabalho.
Num desses arroubos esotéricos que, vez por outra, se abatem sobre mim, decidi que iria para Ibitipoca. Os relatos que busquei na internet contribuiam para lançar uma névoa de misticismo sobre o lugar, sua natureza exótica e deveras exuberante. Pedi os primeiros dois dias de folga no meu novo emprego para esticar um fim de semana no parque nacional e vivenciar a 'revelação' que parecia estar batendo à minha porta.
Fui convencido de que encontraria um duende. No fundo, acredito que existam duendes, mas eles não têm poderes mágicos. São prestidigitadores natos que, dado seu reduzido tamanho e agilidade desconcertante, são incumbidos de furtar isqueiros para acender a infinidade de incensos consumidos no mundo da fantasia. Afinal, não há produção material por lá e corre solta a notícia de que fadas, gnomos, anjos, curupiras e até mesmo o saci pererê acabaram viciados na tecnologia da chama fácil, abandonando definitivamente suas formas arcaicas de produção de fogo. Por isso os isqueiros desaparecem com tanta frequência, às vezes de dentro dos bolsos! E os malditos duendes, dizem, gozam de enorme prestígio no universo paralelo dado o monopólio do fornecimentos do aparato!
Bem, claro que não é nada disso. Nem nas fadas acredito, imagine os duendes. Mas (quase tão exdrúxulo quanto acreditar neles) levei mesmo alguma fé de que havia alguma 'mensagem' para mim em Ibitipoca, já não me lembro bem por quê. Tinha nada, mas só soube quando voltei. E ainda estou contando da ida. Cabe a mim não antecipar os fatos.
Para começar, preciso confessar que ir de ônibus daqui para o interior de Minas é uma tarefa inglória. Não sei ao certo quanto tardei, mas especulo algo entre 9 e 12 horas. E a cada minuto que me afastava, em um dos três onibus que peguei para alcançar meu destino, imaginava quão mais tortuosa não seria a volta... Felizmente, não sou de desistir no meio do caminho (se necessário, desisto no início mesmo), especialmente das empreitadas mais sem sentido a que me dedico. Ademais, era um desafio. E acho que gosto de (alguns) desafios.
Consegui levar um monte de tralha, tudo só pra mim. Me orgulhei de caminhar quase uma dezena de quilômetros com tanto equipamento (e peso!). Num rasgo de luxo, em geral, levo até meu travesseiro de penas. As pernas ainda aguentam praticamente qualquer coisa, e eu abuso, castigando ombros e costas. Quando fiz a mala, sequer desconfiava das subidas generosas, sem sequer uma remota chance de conseguir carona, que enfrentaria.
Cheguei na entrada do parque já quase na hora de fechar. Paguei o que, por ali estar, já devia. E fui entrando... Mas não havia chegado, não ainda. O sujeito da portaria informou que a área de camping estava a mais de um quilômetro dali... Então, tive o meu primeiro choque andarilho. Mais um quilometro, naquelas condições, certamente pareceriam três! E pareceram, apesar do declive da via que, de certa forma, desperdiçava quase todo o esforço que fizera para subir... Ah, uma bicicleta numa hora dessas! Não tinha...
Terminei de montar a barraca, já escuro, com a ajuda da lanterna que comprei no único comércio dentro do parque e, para quem estava, como eu, traumatizado com a distância do centro do vilarejo, único estabelecimento comercial do universo. Me dei conta, com desespero, que havia gastado muito do dinheiro (em espécie) que levava pelo caminho. Pelos meus cálculos, além da grana para os ônibus da volta (até o caixa eletrônico mais 'próximo'), tinha o suficiente para uma refeição diária e uns dois pacotes de biscoito, para quando a fome apertasse no intervalo entre um almoço e outro. Cara, nessas horas é foda ser pão-duro! Custava ter tirado mais alguns reais e, se fosse o caso, voltar com eles pra casa? Custa! Custa muito, quase sempre.
Adriano era o nome do sujeito muito simpático que cuidava da venda. Ele foi, por diversas vezes, minha única companhia no parque. Quando cheguei, servia cerveja para o chefe da reserva. Carioca gente boa, morava lá havia alguns anos. Conversei rapidamente com a dupla e fui para meu acampamento solitário. Só na barraca, só no camping... Quando me afastei das luzes da venda, vi acender o céu mais impressionante que já vi na vida. Ainda olhava para o alto embasbacado quando senti a tremedeira! Ossos já gelados... Frio!
Corri para meu abrigo tremendo horrivelmente e descobri que, dentre minha muita tralha, não havia cobertores suficientes... Afinal, fui presenteado com uma das noites mais frias do ano até então... Algo entre três e sete graus, não lembro bem... Dormi pessimamente, só quando começou a amanhecer, no curto intervalo entre o frio congelante da noite e o calor insólito do sol alto que lá fazia.
Relatei o ocorrido a meu novo amigo que, extremamente prestimoso, me ofereceu um cobertor. Ele também, ciente de minha situação financeira, caprichava muito nos almoços, que consumia depois de uma tarde de caminhadas. Me ofereceu drogas leves, como alguns goles de um conhaque terrível. Eu aceitava os mimos, muito por necessidade, mas por perceber que ele havia se conformado com o fato de que eu traçava suas refeições com disposição invulgar, mas não estava disposto a comê-lo.
De dia, era o caminhar...
Paisagens realmente alucinantes, rio e rochas poderosas. Mas água fria, de gelar num átimo todo o calor acumulado no caminho. E que caminhos. Pontos em que, equidistante entre o nada e o nada, me sentia mais sozinho do que nunca. E brincava comigo.
Para resumir a questão... Ibitipoca é lindo, deveras. Mas trate de levar o seu amor consigo! E faça um favor para o seu amigo: vá de carro!
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quinta-feira, 19 de agosto de 2010
quinta-feira, 27 de maio de 2010
Universo-idade
Já faz um tempo que, enquanto conversava com um grande amigo sobre coisas banais, percebi que ele insistia em levar o assunto até um patamar não tão alto, ao ponto de que eu não conseguisse distingui-lo de uma parede, nem baixo o suficiente para ser tratado como degrau. Me sentia perdendo o ponto por pouco e, astuto que sou, soube perguntar que diabos era aquilo que ele estava fazendo. Ele, astuto que é, contou que devia tratar-se dos estudos recém iniciados. O novo milênio mal havia começado e eu, até um pouco tardiamente, descobria a eloquência adolescente das ciências sociais. Soube que, dentro delas, descontando a política, que nunca foi minha praia, os velhos mais barbudos tem cento e poucos anos. E que mulheres exóticas e sortidas igualmente interessavam-se pelo tema. Cofiei a barba, vastíssima àquela altura, e concluí que desenvolver a lábia e estudar mais lábios femininos era justamente o que eu estava precisando.
Depois do longo limbo musical, quando vivia de sonho, resolvi voltar à universidade para tentar exercitar os meus gordinhos e relaxados, embora surpreendentemente bons de bola, neurônios. Prestei o vestibular...
Classificado?
Não... Nem quase.
1ª reclassificação! E aí!?
Não... Nada.
2ª reclassificação... Foi?
Nem...
Depois disso, não sei bem onde, vi um comunicado dizendo que os interessados em concorrer a futuras reclassificações deveriam comparecer a um determinado lugar, sob risco de serem banidos para sempre do concurso. Nem sei por que fui, mas fui. Era um lugar estranho... Tinha algo a ver com enfermagem... Lá, assinei alguma coisa, e voltei pra casa...
Tampouco lembro como, mas me procuraram. Passei! Porra, tirei quase 10 na redação! Era justo... Mas passei em último... E o sujeito classificado logo a minha frente, que conheci no dia em que me apresentei para a matrícula, parecia seriamente limitado. No fundo, contudo, estávamos todos - do primeiro a mim -empatados, recebendo a mesma dádiva: os gramados do gragoatá, as peladas no fim de tarde e a famigerada 'copa de golzinho', a avenida Bob Marley, os barbudos, as beldades, as festinhas, os festões e as festas médias, o visual da baía, o pôr-do-sol desconcertante, as rodas de baralho, o xadrez introspectivo, o xadrez festivo, o xadrez noturno, o bate papo no chão, sob as árvores, os dois bancos de kombi, os assuntos baldios, alguns loucos varridos, outros por panos passados, a goiabeira, as guerras mundiais nos tabuleiros, o Sistema sob críticas, chacotas, estudos, o Sistema sobre todos, uma mulher, a filha e alguns dos melhores amigos que se pode conseguir. Tinha até aulas nos intervalos disso tudo.
Difícil saber se valeu a pena.
Pena que acabou.
Depois do longo limbo musical, quando vivia de sonho, resolvi voltar à universidade para tentar exercitar os meus gordinhos e relaxados, embora surpreendentemente bons de bola, neurônios. Prestei o vestibular...
Classificado?
Não... Nem quase.
1ª reclassificação! E aí!?
Não... Nada.
2ª reclassificação... Foi?
Nem...
Depois disso, não sei bem onde, vi um comunicado dizendo que os interessados em concorrer a futuras reclassificações deveriam comparecer a um determinado lugar, sob risco de serem banidos para sempre do concurso. Nem sei por que fui, mas fui. Era um lugar estranho... Tinha algo a ver com enfermagem... Lá, assinei alguma coisa, e voltei pra casa...
Tampouco lembro como, mas me procuraram. Passei! Porra, tirei quase 10 na redação! Era justo... Mas passei em último... E o sujeito classificado logo a minha frente, que conheci no dia em que me apresentei para a matrícula, parecia seriamente limitado. No fundo, contudo, estávamos todos - do primeiro a mim -empatados, recebendo a mesma dádiva: os gramados do gragoatá, as peladas no fim de tarde e a famigerada 'copa de golzinho', a avenida Bob Marley, os barbudos, as beldades, as festinhas, os festões e as festas médias, o visual da baía, o pôr-do-sol desconcertante, as rodas de baralho, o xadrez introspectivo, o xadrez festivo, o xadrez noturno, o bate papo no chão, sob as árvores, os dois bancos de kombi, os assuntos baldios, alguns loucos varridos, outros por panos passados, a goiabeira, as guerras mundiais nos tabuleiros, o Sistema sob críticas, chacotas, estudos, o Sistema sobre todos, uma mulher, a filha e alguns dos melhores amigos que se pode conseguir. Tinha até aulas nos intervalos disso tudo.
Difícil saber se valeu a pena.
Pena que acabou.
Velho Francisco
Estou perplexo com a persistencia do resfriado que está morando em mim nas últimas semanas. Passei pela fase dos primeiros e esparsos espirros, a da produção incessante de coriza e afins, e acabo de chegar à insuportável fase da tosse seca. Por sorte, já estou preparado psicologicamente para escutar o chiste pré-histórico de que alguém perdeu um cachorro com os mesmos sintomas.
De toda forma, o pior é que meu sistema imunológico não se decide entre me derrubar de vez, ou esculachar logo esses malditos, magrinhos, fracos e minúsculos vírus da gripe. Convenhamos, ainda se fosse gripe aviária, suína, espanhola ou qualquer outra prima rica, vá lá, mas ficar dando sopa pra um resfriado!?
Bem, tá certo que eu estou dificultando as coisas pra ele: até ontem, não havia tirado sequer um cigarro da cota diária, e, em casa, só vestia a camisa depois de sentir os ossos gelarem. Ademais, estou dormindo de forma ridícula, muitas vezes, menos de 5 horas por noite. No fundo, sempre conto com a genética para me proteger nesses casos!
Afinal, além do nome, herdei do meu avô a saúde de ferro, o 'buraco' no peito, a virilidade desgovernante, e mesmo a careca que se insinua por baixo de meus cabelos. Sou muito grato a ele por poder desprezar, em grande conta, as consultas médicas. Não tomo remédio, não faço tratamentos e tenho a convicção de que, se a cabeça estiver em ordem, não há moléstia que me queira. Nem os mosquitos gostam muito de mim. O que é providencial, pois tampouco uso repelentes.
O velho Braz, já próximo aos 80, caminhava mais de 3 km diários, só para ir até a minha casa, catar centenas de carambolas, brincar com meu irmão mais novo (uma criança de uns 8 anos, na época), e ser trancado dentro do viveiro ou do banheiro de fora por ele, além de providenciar os consertos mais esdrúxulos nas muitas coisas quebradas que lá estavam. Voltava caminhando também. Forte como um touro, o velho só morreu porque ficou triste.
E foi assim: depois que ele começou a se perder na rua, e a ser encontrado varrendo espaços públicos, não o deixaram mais sair de casa. O alzheimer veio devagar e, no princípio, quando ele embolava algumas palavras, refletia: "tô ruim hoje!" Mas no início do fim já não se podia compreender nenhuma palavra do que dizia, ele urinava pelos cantos da casa e comia quantas vezes lhe fosse oferecido o maior dos pratos de peão. Minha avó, única pessoa que cuidava dele, não podia sair que o velho ia pra janela, chamá-la aos gritos. E assim ficava até que ela voltasse.
Sempre dura, filha única, minha mãe não tinha condição de pagar sequer um plano de saúde para o velho, imagine uma enfermeira para ajudar a vó. Resumindo, acho que meu pai aceitou dar uma força com os custos e resolvemos colocar o velho no asilo pra tentar salvar a velha, que definhava a olhos vistos depois de tantos anos de cuidado.
Nunca me esqueço do dia que fomos ajudar a levá-lo: eu e meu irmão o amparamos nas escadas e o encaixamos no taxi. Minha mãe vinha atrás, dizendo, como que para uma criança, que íamos dar um passeio. Ele não devia sair havia alguns meses; mesmo assim, a informação poderia ser factível para uma pessoa que já não falava coisa com coisa, nem reconhecia ninguém. Mas não... Enquanto o taxi manobrava, de frente para o prédio onde vivera boa parte de sua vida e jamais voltaria a ver, meu avô Braz, completamente maluco de alzheirmer, chorou.
A mente humana é mesmo um mistério. E jamais saberemos se ele chorou por saudade de outros tempos vividos ali, se por medo do lugar para onde o levávamos, ou da morte, se por tisteza de ter acabado daquele jeito - dando tanto trabalho depois de cuidar de todo mundo. Sabe-se lá pensando em quê, se foi o velho, que quase ninguém sabia que chamava Francisco.
E, claro, não deu outra. Nos primeiros dias, parecia bem. Melhorando até, pelo fato de poder voltar a caminhar fora do apartamento, pegar sol. Mas, um mês depois, ligaram para dizer que ele fora internado. Pneumonia. Hoje, tenho dúvidas se estou triste por estar gripado, ou o contrário, mas essa pneumonia do velho não dá margem a outras interpretações: ele assumia que entregava os pontos e havia, finalmente, decidido se deixar morrer.
Depois de uma vida de pagamentos de planos de saúde exorbitantes, minha mãe tinha ficado sem grana para ajudar a custear o pagamento do dele. Afinal, o que ele ganhava como aposentado, sequer cobria o valor pedido. Resultado: quarto improvisado (acho que era uma copa) no Antônio Pedro, hospital público de Niterói. Não sei se por sorte, ele estava sozinho no 'quarto'. Um traço de luxo. Fui convocado para montar guarda lá por uma noite. E fui, contrariado.
Lá estava o meu avô, mastigando sem parar a boca sem dentes, deitado numa cama, vazado por tubos que tentava arrancar insistentemente. Os olhos flamejavam em minha direção e não demonstravam o mais remoto entendimento de minhas ponderações: que se acalmasse e que, daquela forma, se feririra com as agulhas. Pedi ajuda a uma enfermeira, que lhe desse algo que sossegasse o leão. Ela disse que não havia nada, e que poderia amarrá-lo, se eu permitisse.
Amarrar!? Nunca!, pensei... Mas, passadas poucas horas, liguei para o meu irmão, pedindo ajuda depois de surtar de tanto repetir o movimento de afastar a mão esquerda dos tubos, e deixei que atassem a mão teimosa à cama.
Passamos a noite lá. Eu e Marcelo. O velho, com aquela sutil capacidade de compreensão que derramara na lágrima do taxi, fazia as contas, e tentava refletir sobre como seria dali pra frente, donde não tem mais volta. Talvez pedisse para caminhar, pela última vez que fosse, para a vassoura mais próxima, para tentar ajudar em alguma coisa. Hoje imagino que teríamos feito tudo diferente, e, provavelmente, levaríamos ele para passear pelo jardim do hospital, embora já fosse noite e o quadro tão crítico. Mas éramos adolescentes aborrecidos demais por perder uma noite de videogame para passar a penúltima noite de vida do cara que nos ensinou a nadar ao lado dele.
Seu Francisco Braz foi um sujeito muito simples. E tenho orgulho de ser, de alguma forma, a continuação dele, independentemente de ter lá meus complexos. Acho que não consigo saber exatamente o quanto aprendi com ele. O interesse pelos gravadores de fita K7, a maneira muito particular de torcer pelo flamengo, o sobrenome-apelido que, em mim, acabou pegando por conta da forma como passei, em determinada altura, a assinar meus e-mails... Foi-se um Braz, que deixou comigo o nome dele. E eu até já passei adiante, mas ainda tenho muito tempo meu. Preciso, portanto, pensar melhor sobre o que fazer com o que ainda me resta - árdua tarefa. Afinal, pelos meus cálcuos, tenho mais 80 anos de vida (sim, acho que vou aos 110!). Espero que seja suficiente.
Esse meu resfriado, agora que me aliei a um spray de própolis, com sorte, sobrevive uns 2 dias mais. Se tanto! E, não fosse por ele, talvez eu não lembrasse do vô.
A vida é cheia de nuanças mesmo!
De toda forma, o pior é que meu sistema imunológico não se decide entre me derrubar de vez, ou esculachar logo esses malditos, magrinhos, fracos e minúsculos vírus da gripe. Convenhamos, ainda se fosse gripe aviária, suína, espanhola ou qualquer outra prima rica, vá lá, mas ficar dando sopa pra um resfriado!?
Bem, tá certo que eu estou dificultando as coisas pra ele: até ontem, não havia tirado sequer um cigarro da cota diária, e, em casa, só vestia a camisa depois de sentir os ossos gelarem. Ademais, estou dormindo de forma ridícula, muitas vezes, menos de 5 horas por noite. No fundo, sempre conto com a genética para me proteger nesses casos!
Afinal, além do nome, herdei do meu avô a saúde de ferro, o 'buraco' no peito, a virilidade desgovernante, e mesmo a careca que se insinua por baixo de meus cabelos. Sou muito grato a ele por poder desprezar, em grande conta, as consultas médicas. Não tomo remédio, não faço tratamentos e tenho a convicção de que, se a cabeça estiver em ordem, não há moléstia que me queira. Nem os mosquitos gostam muito de mim. O que é providencial, pois tampouco uso repelentes.
O velho Braz, já próximo aos 80, caminhava mais de 3 km diários, só para ir até a minha casa, catar centenas de carambolas, brincar com meu irmão mais novo (uma criança de uns 8 anos, na época), e ser trancado dentro do viveiro ou do banheiro de fora por ele, além de providenciar os consertos mais esdrúxulos nas muitas coisas quebradas que lá estavam. Voltava caminhando também. Forte como um touro, o velho só morreu porque ficou triste.
E foi assim: depois que ele começou a se perder na rua, e a ser encontrado varrendo espaços públicos, não o deixaram mais sair de casa. O alzheimer veio devagar e, no princípio, quando ele embolava algumas palavras, refletia: "tô ruim hoje!" Mas no início do fim já não se podia compreender nenhuma palavra do que dizia, ele urinava pelos cantos da casa e comia quantas vezes lhe fosse oferecido o maior dos pratos de peão. Minha avó, única pessoa que cuidava dele, não podia sair que o velho ia pra janela, chamá-la aos gritos. E assim ficava até que ela voltasse.
Sempre dura, filha única, minha mãe não tinha condição de pagar sequer um plano de saúde para o velho, imagine uma enfermeira para ajudar a vó. Resumindo, acho que meu pai aceitou dar uma força com os custos e resolvemos colocar o velho no asilo pra tentar salvar a velha, que definhava a olhos vistos depois de tantos anos de cuidado.
Nunca me esqueço do dia que fomos ajudar a levá-lo: eu e meu irmão o amparamos nas escadas e o encaixamos no taxi. Minha mãe vinha atrás, dizendo, como que para uma criança, que íamos dar um passeio. Ele não devia sair havia alguns meses; mesmo assim, a informação poderia ser factível para uma pessoa que já não falava coisa com coisa, nem reconhecia ninguém. Mas não... Enquanto o taxi manobrava, de frente para o prédio onde vivera boa parte de sua vida e jamais voltaria a ver, meu avô Braz, completamente maluco de alzheirmer, chorou.
A mente humana é mesmo um mistério. E jamais saberemos se ele chorou por saudade de outros tempos vividos ali, se por medo do lugar para onde o levávamos, ou da morte, se por tisteza de ter acabado daquele jeito - dando tanto trabalho depois de cuidar de todo mundo. Sabe-se lá pensando em quê, se foi o velho, que quase ninguém sabia que chamava Francisco.
E, claro, não deu outra. Nos primeiros dias, parecia bem. Melhorando até, pelo fato de poder voltar a caminhar fora do apartamento, pegar sol. Mas, um mês depois, ligaram para dizer que ele fora internado. Pneumonia. Hoje, tenho dúvidas se estou triste por estar gripado, ou o contrário, mas essa pneumonia do velho não dá margem a outras interpretações: ele assumia que entregava os pontos e havia, finalmente, decidido se deixar morrer.
Depois de uma vida de pagamentos de planos de saúde exorbitantes, minha mãe tinha ficado sem grana para ajudar a custear o pagamento do dele. Afinal, o que ele ganhava como aposentado, sequer cobria o valor pedido. Resultado: quarto improvisado (acho que era uma copa) no Antônio Pedro, hospital público de Niterói. Não sei se por sorte, ele estava sozinho no 'quarto'. Um traço de luxo. Fui convocado para montar guarda lá por uma noite. E fui, contrariado.
Lá estava o meu avô, mastigando sem parar a boca sem dentes, deitado numa cama, vazado por tubos que tentava arrancar insistentemente. Os olhos flamejavam em minha direção e não demonstravam o mais remoto entendimento de minhas ponderações: que se acalmasse e que, daquela forma, se feririra com as agulhas. Pedi ajuda a uma enfermeira, que lhe desse algo que sossegasse o leão. Ela disse que não havia nada, e que poderia amarrá-lo, se eu permitisse.
Amarrar!? Nunca!, pensei... Mas, passadas poucas horas, liguei para o meu irmão, pedindo ajuda depois de surtar de tanto repetir o movimento de afastar a mão esquerda dos tubos, e deixei que atassem a mão teimosa à cama.
Passamos a noite lá. Eu e Marcelo. O velho, com aquela sutil capacidade de compreensão que derramara na lágrima do taxi, fazia as contas, e tentava refletir sobre como seria dali pra frente, donde não tem mais volta. Talvez pedisse para caminhar, pela última vez que fosse, para a vassoura mais próxima, para tentar ajudar em alguma coisa. Hoje imagino que teríamos feito tudo diferente, e, provavelmente, levaríamos ele para passear pelo jardim do hospital, embora já fosse noite e o quadro tão crítico. Mas éramos adolescentes aborrecidos demais por perder uma noite de videogame para passar a penúltima noite de vida do cara que nos ensinou a nadar ao lado dele.
Seu Francisco Braz foi um sujeito muito simples. E tenho orgulho de ser, de alguma forma, a continuação dele, independentemente de ter lá meus complexos. Acho que não consigo saber exatamente o quanto aprendi com ele. O interesse pelos gravadores de fita K7, a maneira muito particular de torcer pelo flamengo, o sobrenome-apelido que, em mim, acabou pegando por conta da forma como passei, em determinada altura, a assinar meus e-mails... Foi-se um Braz, que deixou comigo o nome dele. E eu até já passei adiante, mas ainda tenho muito tempo meu. Preciso, portanto, pensar melhor sobre o que fazer com o que ainda me resta - árdua tarefa. Afinal, pelos meus cálcuos, tenho mais 80 anos de vida (sim, acho que vou aos 110!). Espero que seja suficiente.
Esse meu resfriado, agora que me aliei a um spray de própolis, com sorte, sobrevive uns 2 dias mais. Se tanto! E, não fosse por ele, talvez eu não lembrasse do vô.
A vida é cheia de nuanças mesmo!
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